Um estupro no Brasil Colônia

Desde que há Brasil, este país inventado a partir de 1500, há crime de estupro previsto em lei. As Ordenações Afonsinas, o código legal que durou até 1513, explicavam como a vítima deveria se portar para registrar queixa.
 
 Que se alguma mulher forçarem em povoado, que deve fazer querela em esta guisa, dando grandes vozes, e dizendo, ‘vedes que me fazem’, indo por três ruas; e se o assim fizer, a querela seja valedoura: e deve nomear o que a forçou por seu nome.
 
 Estar previsto por lei, porém, é coisa que ilude. Estupro foi compreendido de muitas formas, punido noutras tantas e evoluiu de forma muito lenta até a legislação atual. A história desta evolução diz muito sobre o Brasil.
 
 As “ordenações” eram compilações. A reunião de todas as leis que um rei considerava válidas. Valeram as de dom Afonso V por um tempinho e, depois, passaram a vigorar as Ordenações Manuelinas, editadas pelo rei que liderou o descobrimento. Em 1605 mudou de novo e vieram as Ordenações Filipinas, de Filipe II da Espanha. Tempos de União Ibérica. Mesmo quando o duque de Bragança reconquistou a independência portuguesa, o código foi mantido. É o pacote legal que valeu por todo o período de formação do Brasil, começou a mudar após o Império mas manteve-se parcialmente em vigência até princípios do século 20.
 
 Assim, no tempo de Cabral, a mulher estuprada tinha de ter presença de espírito para, imediatamente após o ato, sair gritando pelas ruas que fora vítima do crime e, se possível, citando o criminoso. Talvez muito machucada, possivelmente em choque, e ainda assim obrigada à exposição pública. Se soa bárbaro, piora. Porque para compreender a lei é preciso entender, antes, o lugar do homem e o da mulher naquela sociedade.
 
 Veja-se o caso de outro crime sexual previsto pelas Ordenações Filipinas, o adultério. A lei autorizava o marido de uma mulher adúltera que matasse tanto ela quanto seu amante desde que fossem, tanto marido quanto amante, de classe social equivalente. Um homem do povo não poderia matar um fidalgo, embora pudesse requerer dele uma indenização. Tratava-se de um crime de honra. A indenização ou a morte restabeleciam, perante a sociedade, a honra do homem traído. A mulher adúltera, não importava sua classe social, também perdia a honra. Só que de forma irrecuperável. Se o marido traído por adultério poderia perdoar sua mulher, esta era uma escolha dele e apenas. A relação, dentro de um casamento, foi legalmente desigual por quase toda história. O marido tinha poder de vida e morte sobre sua mulher e, assim, ele tinha como recuperar a honra. Ela, não. Nem se adúltera, tampouco se estuprada. Não bastasse a violência, a honra da mulher era perdida para sempre. Uma marca indelével. Não à toa, muitas vezes era preferível não acusar o criminoso para evitar a exposição.
 
 E, sim, é claro que piora. Se alguma mulher for corrupta de sua virgindade por força, de noite ou de dia, bradasse logo no dito ermo: ‘fuão me fez isto’, mostrando logo sinal de corrompimento de sua virgindade. Fuão, a versão arcaica da palavra fulano, dizia a lei Filipina, precisava ser acusado de presto. O brado em público imediato tinha razão de ser. Era para permitir a possibilidade de flagrante. A Igreja Católica, origem indireta das leis, desconfiava da mulher. Ela perdia a honra mais fácil e era vista como pouco confiável, um tipo humano cheio de subterfúgios, essencialmente traíra. O crime não podia ficar apenas na palavra de algoz contra vítima pois a palavra da mulher valia menos. O receio é de que, para prejudicar bons homens, mulheres pudessem levantar falsas acusações de violência. Assim, para haver estupro, era preciso que antes a mulher fosse virgem. Estupro marital era conceito inexistente. E uma mulher solteira que já não fosse virgem não tinha honra para que a perdesse.
 
 Porque o crime não era contra o ser humano. Era contra uma entidade abstrata que o ser humano porta: sua honra.
 
 A definição de estupro, portanto, era bem distinta da atual. A mulher era propriedade do marido. Mesmo que casasse por desejo de seu pai quase criança, logo após a primeira menstruação. Uma escrava era propriedade do senhor. Em nenhum destes casos poderia uma relação sexual ser considerada crime. Não havia violação da honra mesmo que houvesse violência.

Vida real

A vida prática, na colônia, forçava que todos relaxassem a lei. O número de mulheres brancas era muito menor do que o de homens na composição da elite. Em Minas Gerais, centro econômico do país durante quase todo o século 18, metade dos habitantes eram escravos. Em 1776, 60% da população era composta por homens. Mulheres brancas compunham apenas 8% dos mineiros. Boa parte dos casamentos entre pessoas livres, portanto, não se dava no papel e os relacionamentos estáveis entre homens brancos e mulheres negras eram a regra, não a exceção. O poeta inconfidente Inácio José de Alvarenga Peixoto casou-se com uma moça tida como uma das mais belas da elite local, Bárbara Heliodora, descendente dos bandeirantes que descobriram o ouro. Já tinham filhos quando finalmente um padre amigo os casou. Outro poeta revolucionário, Tomás Antônio Gonzaga, engatou uma longa relação com Maria Joaquina Anselma de Figueiredo, loura disputadíssima em Vila Rica. Teve com ela um filho e lhe dedicou alguns dos mais bonitos poemas de amor em português. Os historiadores a apelidaram de Marília loura, por ser uma das duas inspiradoras do Dirceu que ele encarnava em versos. Gonzaga era o número dois da administração portuguesa em Minas. Quando o número um, o governador Luís da Cunha Meneses, se mostrou interessado, Anselma virou as costas para o poeta. E este, com raiva, escreveu contra seu adversário as Cartas Chilenas nas quais Meneses se torna o corrupto governador Fanfarrão Minésio. A moça também teve com o segundo namorado outro filho. Nada disso era segredo na capital da província, e a atual Ouro Preto era a maior cidade das Américas. O terceiro poeta, Cláudio Manuel da Costa, jamais casou no papel, mas passou a vida com Francisca Arcângela de Sousa, uma escrava alforriada com quem teve cinco filhos. Xica da Silva, no Arraial do Tejuco, atual Diamantina, pode parecer exceção, mas não era. Metade das casas daquela cidade pertenciam a mulheres que haviam nascido escravas e se envolveram com homens da elite, quase sempre mais velhos, e que lhes deixavam por herança filhos, dinheiro e propriedades.
 
 É impossível julgar, em cada um destes casos, onde há amor e onde há violência. Pois, em troca de sexo, garantiram cada uma destas mulheres não só deixar a senzala, com uma vida mais digna para elas e os filhos.
 
 Embora a letra dura da lei fosse rígida, o conceito de honra e da liberdade sexual tinha sua fluidez, principalmente no povo, mas até mesmo na elite. Quem sofria particularmente eram as crianças. Quando engravidavam fora do casamento, as mulheres da elite sumiam por um tempo e os bebês recém-nascidos eram colocados nas rodas de expostos de conventos, dados sem muito destino. O primeiro filho de Anselma foi dado a um casal para que o criasse. Quando ela engravidou de Cunha Meneses, o governador a fez se casar com um militar, a quem subornou para assumir a criança. Mulheres negras que porventura ganhassem a alforria sem casar com o antigo senhor tinham só um jeito para o sustento: oferecer o corpo. Em muitas formas que não apenas o estupro, dos mais pobres aos mais ricos, a violência sexual contra a mulher era a norma.
 
 A violência ligada ao sexo, por séculos, foi o pano de fundo do cotidiano brasileiro.

Quem é a vítima?

O estupro só ganhou o nome de estupro em 1890, quando o Brasil já era republicano. Permaneceu um crime que atingia a “segurança da honra, honestidade das famílias e do ultraje público”. Em 1940, modernizada, a lei o enquadrou entre “os crimes contra os costumes”. Ou seja, o crime ainda não era contra sua vítima e sim contra os valores da sociedade.
 
 É a marca afonsina. Filipina. Colonial. Imperial. Chocantemente velha. A vítima não sofre pela violência brutal. Sofre pelo que vão pensar dela. Uma mulher desonrada.
 
 A civilidade só veio em 2009, quando o Código Penal enxergou estupro como um crime “contra a dignidade sexual”.
 
 Contra a dignidade humana.
 
 Faz sete anos. E isso diz muito sobre nós.
 
 Quando se duvida do estupro de uma adolescente porque é ativa sexualmente, há motivo. Por quase toda a história, mulheres que não tivessem um comportamento casto e submisso eram mulheres de quem se deve desconfiar. 450 anos de Brasil pesam sobre nós. Sobre como pensamos. Sobre nossos costumes.
 
 É assim que nasce a cultura do estupro.

A primeira crise política

Hoje, a Praça da Sé em São Paulo marca o centro absoluto da cidade. É a partir de lá que se mede a quilometragem das rodovias, um grande largo concretado com fila de palmeiras, a principal estação de metrô, e nas redondezas livrarias e centros culturais, além da oferta de serviços burocráticos rápidos à população. Mas, quando Jaguaretê apareceu ali, num dia em 1640, o cenário era todo muito diferente. Chão de terra e, ao lado, a igrejinha da Matriz. Aos 45, ele já era um homem importante. Uns séculos depois, historiadores que queriam engrandecer as figuras do passado traduziram o apelido para Tigre. Como se os paulistanos de antanho falassem português entre si ou conhecessem os bichos de África e Ásia. Não havia tigre no Brasil. Jaguaretê era filhote de onça em tupi, um homem importante e feroz. Trineto do grande chefe Tibiriçá. Bisneto de João Ramalho, fundador da cidade. E por este apelidoconheciam Fernão de Camargo. Mameluco como quase todos da cidade. Apenas cinco anos antes, havia liderado com Luís Dias Leme a primeira grande bandeira contra as missões jesuítas do sul. Viviam de caçar índios para escravizar. Mas não naquele dia. Ali, no Largo da Matriz, de frente à futura Sé, Fernão viu seu inimigo, desembainhou espada e adaga e partiu para cima. Começava, ali, a primeira disputa política intensa do Brasil e, depois daquele dia e pelos vinte anos seguintes, São Paulo rachou em dois partidos.
 
Não foi um ano qualquer, 1640. A tensão na cidade era intensa. Havia incertezas no ar e uma violenta disputa pelo poder. Começou com os jesuítas. Os padres de preto, também fundadores de São Paulo, se compreendiam como guardiões dos nativos. Entendiam sua missão na América como a de converter a população local. A discussão entre antropólogos sobre se havia mérito real nesta defesa é longa, mas os jesuítas atrapalhavam os bandeirantes em suas expedições de caçada a escravos. Quando um padre apareceu na cidade com uma bula definitiva assinada pelo papa Urbano VIII autorizando a excomunhão de quem escravizasse os índios, o lento e continuado acúmulo de rixas entre paulistanos e jesuítas ao longo de quase um século explodiu. Excomunhão era coisa muito séria num tempo em que religião e vida civil se confundiam. Fernão de Camargo liderou o povo paulistano para o que chamaram de botada dos padres fora. Expulsos para o Rio de Janeiro, demorariam sete anos para negociar o retorno.
 
A expulsão dos padres jesuítas, repentinamente, criou uma situação de que tudo pode. Afinal, padres de outras ordens não estavam nem aí para os tupis.
 
Também naquele ano, João, oitavo duque de Bragança, liderou o Golpe que rompeu a União Ibérica e ascendeu ao trono português como dom João IV. Portugal tornara-se independente. A notícia provocou confusão na colônia. O que era melhor? Manter-se parte do Império espanhol ou jurar fidelidade ao novo rei. Naquele clima de revolta à flor da pele paulistana, um grupo chegou a declarar o castelhano Amador Bueno rei da cidade, insinuando fidelidade à Espanha. Bueno, que era tio de Fernão, sequer vacilou. De presto ergueu a espada jurando fidelidade a Portugal. Não queria confusão.
 
No cenário de incertezas, o que estava em jogo eram dinheiro e posição social. Poder. Primeiro, controle sobre os escravos índios. Ou seja: riqueza. Em segundo, o controle da Câmara Municipal. Status. Juntos, poder.
 
Nos primeiros dois séculos de Brasil, as eleições eram bem mais livres do que no período final da Colônia ou durante o Império. Os mandatos duravam três anos e os pleitos ocorriam ao final de cada turno, em 1º de janeiro. Naquelas cidades coloniais essencialmente pobres, votavam quase todos os livres. O voto consistia em dizer, ao pé do ouvido do escrivão, o nome de seis eleitores. Os seis mais votados, por sua vez, eram divididos em duplas que apresentavam, cada qual, três listas com sugestões para três vereadores, três procuradores e três juízes. O juiz mais velho da cidade, então, avaliava as listas tríplices selecionando três nomes finais para cada cargo. Bolas de cera marcadas com os nomes dos escolhidos eram guardadas em sacos e protegidas até o dia da posse, quando os nomes seriam divulgados. Não havia, ainda, a ideia de separação entre poderes. Os vereadores tinham um cargo mais executivo, tomando decisões a respeito de que impostos cobrar e que obras publicas fazer. Os procuradores traziam a estes vereadores os desejos do povo. E os juízes decidiam perante queixas. Acima destes homens da Câmara estava o governador, um chefe militar nomeado pelo rei com um bocado de poder sobre os eleitos. Ainda assim, a Câmara tinha muito espaço político e ocupar cargos na gestão, embora não rendesse salários, trazia imenso status. Eram, os escolhidos, chamados de nobres da terra.
 
Fernão de Camargo era juiz. Quando desembainhou espada e adaga partindo contra Pedro Taques, disparou uma guerra. Ninguém os apartou mas, vindos de toda parte, muitos se aliaram a eles. A briga, aço contra aço, se estendeu pelas ruas secundárias, dando uma volta ao quarteirão e tornando ao Largo da Matriz. Na atual Praça da Sé. Homens caíram mortos. Os Camargo estavam, ali, rompendo com os Pires ligados a Taques. Um dos primeiros historiadores paulistanos comparou a briga com Montequios e Capuletos shakespearianos.
 
Como em Romeu e Julieta, a guerra civil deixou muitos mortos. Mas nenhum caso é mais emblemático do que o de Salvador Pires que matou sua mulher, Leonor de Camargo, pouco depois. Fernão Dias Paes, um dos mais famosos bandeirantes, partiu em defesa de Salvador, protegendo-o para que fosse levado de navio para julgamento na Bahia, capital da colônia. Não adiantou. Numa revolta a bordo, pegaram o rapaz assassino, amarraram seu pescoço a uma pedra e atiraram-no ao mar.
 
Por duas décadas, São Paulo dividiu-se entre os partidos Camargo e Pires, com eleições anuladas, queixas contínuas ao governador da região, localizado no Rio, ao governador-geral, na Bahia, e até a Lisboa. A briga política tornou-se um problema para a Coroa. Afinal, perante a constante ameaça de violência, nenhum dos grupos ousava deixar a capital. As bandeiras diminuíram e, com elas, a busca por riquezas no interior do Brasil. E a situação era grave. Após a expulsão dos holandeses de Pernambuco, em 1644, Portugal foi lentamente perdendo o monopólio do açúcar, que começava a ser plantado nas Antilhas. Além disso, o reino há pouco independente havia se comprometido em dívidas com os ingleses. O congelamento por conta de uma disputa local do Brasil sul imobilizava oportunidades.
 
Por fim, um governador-geral impôs a solução. A Câmara passaria a ser composta por um terço Camargos, um terço Pires e um terço neutros. Da briga, sobrou Jundiaí. A cidade, afinal, foi fundada por Camargos que fugiam da lei.

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Uma história do PMDB

Aarão Steinbruch era um político de média importância. E, no entanto, naquele conturbado dezembro de 1965, nenhum nome parecia mais citado em Brasília do que o seu. Todos queriam saber o que ele decidiria. Dos importantes deputados de oposição Tancredo Neves e Ulysses Guimarães ao próprio presidente da República, Humberto Castello Branco. O Ato Institucional de número 2 havia dissolvido os partidos existentes. O Ato Complementar 4 estabelecera regras para a criação de organizações, não exatamente partidos, que os substituiriam nas eleições de 1966. E o critério era claro: 120 deputados, 20 senadores. A agremiação governista, a Arena, já tinha sido formada. Mas o grupo de oposição, não. Tinha os deputados. Mas apenas 19 senadores. Faltava Aarão. Era inacreditável que, com seu histórico, cogitasse ir para a Arena. Nem o governo golpista o desejava em suas hostes. A aparência externa de democracia era importante para o regime. Precisavam de uma oposição. O Modebrás tinha de nascer.
 
Chamava-se Modebrás por aqueles dias. Movimento Democrático Brasileiro. Foi só meses depois que alguém teve a ideia de rebatizá-lo MDB. Steinbruch era gaúcho de Santa Maria, um filho de judeus emigrados da Rússia que se tornou advogado de sindicatos. E, como não era possível ser gaúcho e ligado a trabalhadores sem fazer laços com Getúlio e Jango, Aarão os fez. Mudou-se para o estado do Rio filiado ao PTB, elegeu-se deputado por dois mandatos, entre 1955 e 62. Na toada janguista, assinou o projeto de lei que constituiria o 13º salário e a aposentadoria por tempo de serviço. As leis lhe valeram uma cadeira no Senado e, assim, calhou de tornar-se o nome chave para a oposição à ditadura nascer. Mas Aarão tinha uma condição que ninguém conseguia satisfazer. Só se juntaria ao MDB acaso o partido, no Rio, lhe pertencesse. Já tinha dono, porém. O dono era o presidente nacional do PSD, Ernani do Amaral Peixoto. Seu arquirrival político. E Aarão, assim como Amaral Peixoto, ambicionava ser governador.
 
Antes da ditadura, o Brasil tinha muitos partidos, mas só três com verdadeira representação. Dois, o PTB e o PSD, haviam sido criados por Getúlio. A UDN era uma frente de oposição. É comum descrever o PSD como o conjunto de capatazes regionais, de políticos com muita influência local que se mantinham, desde a República Velha, com as armas do fisiologismo. E o PTB como tendo um sólido pedigree trabalhista, o primeiro partido de massas a esquerda nacional. Mas é um quê injusto. Além de uma esquerda legítima, no PTB havia também um forte núcleo de sindicalistas fisiológicos e gente dedicada a aparelhar o Estado, assim como no PSD existiam não poucos políticos experientes, de atuação sofisticada. Ao nascer, o MDB seria uma costura destas duas legendas. E a costura não era trivial. Embora alianças entre ambos tenham mantido a UDN constantemente afastada do poder nos anos anteriores ao Golpe, os partidos não se misturavam facilmente. O embate entre Steinbruch e Amaral Peixoto foi só o mais dramático. Pressionado pela ditadura, o senador acabou cedendo. Não ganhou o Rio, mas foi para o MDB.
 
É evidente que cederia. A conta era difícil de fechar porque a ditadura já havia cassado aquele naco dos parlamentares de oposição que falavam duro. Muitos preferiram não seguir para o MDB para evitar atritos que lhes custassem a carreira. Quando enfim nasceu, o Movimento Democrático Brasileiro tinha 75 deputados petebistas e 45 pessedistas, além de 10 udenistas que não se dispunham a fechar com um regime de força. (A Arena atraiu 38 deputados trabalhistas.) O grupo nasceu forte onde o PTB era forte. A antiga capital – estado da Guanabara –, o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul. Em São Paulo, não. São Paulo era, como ainda é, um estado politicamente muito atípico. A unidade da federação em que nenhuma das três siglas podia se dizer dominante antes do Golpe.
 
Foi muito duro ser de oposição ao regime até princípios dos anos 1970. O fantasma da cassação estava sempre presente. É neste período que o jovem deputado Mário Covas começa a brilhar. Mas é a experiência de gente como Ulysses e Tancredo que consegue manter o grupo vivo e operante, e assim uma esperança de democracia futura através da política. Em 1970, o partido chegou a ter menos votos do que a soma de brancos e nulos.
 
É com a decadência econômica da ditadura que a sorte do MDB virou. A partir das eleições parlamentares de 1974, a Arena começou a perder nacionalmente. E, em 78, a derrota foi feia. A esta altura, o projeto de abertura já se iniciara, mas os generais queriam garantir um sistema partidário que lhes garantissem vitórias ideológicas. Se o MDB se transformara numa força política, hora de dissolver novamente os partidos e fragmentar a oposição. Mais do que isso. O plano era patrocinar discretamente a criação de um partido de centro que, aliado ao partido leal ao regime, pudesse garantir vitórias futuras.
 
A confusa reforma fez nascer entre 1979 e 80 cinco legendas. O PMDB era uma delas. O partido de centro dos sonhos militares nasceu Partido Popular, encabeçado por Tancredo Neves. Tancredo, como bom político mineiro, fazia a vontade do regime não fazendo. Se descolaria tão logo desse. Havia dois PTBs requeridos. Um do herdeiro político de Vargas, Leonel Brizola. Outro da herdeira de Vargas, sua filha Ivete. Para os militares, foi ótimo – e o PTB brizolista terminou chamado PDT. A Arena se propunha agora como um hipócrita Partido Democrático. Depois ganhou o S de Social. PDS. E, claro, o quinto. O minúsculo PT.
 
Àquela altura, o MDB já estava dividido internamente em quatro grupos. Os Autênticos eram a turma do doutor Ulysses, a gente que ficou. A tendência Popular logo migrou para siglas mais claramente à esquerda, como o PT. Os não-alinhados, liderados pelo senador Itamar Franco, também ficaram. Mas os Moderados, à direita dos outros três, foram em boa parte para o PP. Quando enfim nasceu, quem assinava o programa do recém-formado PMDB eram três intelectuais e um só político. Roberto Mangabeira Unger, José Serra, Fernando Henrique Cardoso e o deputado federal Rafael de Almeida Magalhães. Vinham cheios de intenções.
 
O novo PMDB teria sido um partido de centro-esquerda, muito parecido com o atual PSDB, não fosse a inépcia da ditadura moribunda. Em finais de 1981, com medo de uma grande derrota nas eleições livres para governador que ocorreriam no ano seguinte, o general-presidente João Figueiredo mudou novamente as regras com o Pacote de Novembro, proibindo coligações. No regime de força é fácil. Jogando política é mais complicado. O objetivo era enfraquecer as siglas nascentes. Mas Ulysses Guimarães e Tancredo Neves sabiam jogar xadrez muito melhor, e o PP voltou para dentro do PMDB.
 
Em Minas, Itamar Franco foi sacrificado. Mandava no PMDB mineiro, com Tancredo de volta não tinha chances. O PP paulista era fraco, então localmente o PMDB se dividiu entre Orestes Quércia e Franco Montoro. Quércia, com alianças em muitos diretórios do interior, levou a melhor. No Rio (agora já o estado fundido com a Guanabara), o PMDB inicial era um forte partido de esquerda, principalmente por conta da influência do MR-8, grupo que participara da luta armada. Com o PP de Chagas Freitas, bem mais forte, inflexionou para a centro-direita.
 
É como se, depois de muitas idas e vindas, o PMDB original fosse o PTB pré-ditadura enquanto o PP era o antigo PSD. Nesta integração de dois partidos recém-nascidos, o PMDB original trazia uma inflexão para a centro-esquerda e o PP, com menos afinidades ideológicas, trouxesse outra coisa. Uma rede de lideranças municipais com a qual contar. Em 1988, quando os trabalhos da Assembleia Constituinte estavam para se encerrar, um grupo majoritariamente paulista deixou o PMDB para formar o PSDB. Era um grupo chave no desenho ideológico original. Mas era, também, o grupo que perdera poder regionalmente para Orestes Quércia. Os tucanos nasceram paulistas e não são tão fortes no estado à toa. Desta cisão, porém, restou um PMDB com cara de PP, com cara de PSD.
 
É um partido, por conta desta longa história de idas e vindas, sem ideologia clara, com muitos conflitos internos, mas com uma rede municipal não igualada por qualquer outro partido brasileiro. Muitos cientistas políticos implicariam com esta afirmação: o PMDB é, essencialmente, o PSD fundado em 1945. Opera com a mesma lógica política, uma lógica nada ideológica, mas muito eficiente. De 1990 para cá, é o partido mais estável do Brasil, dono de constantes um quinto do Congresso Nacional. A participação dos outros partidos varia, a do PMDB não. Isto é poder real para qualquer um que consiga domar esta força imensa cravejada de pequenas rivalidades internas. Por conta desta fragmentação, é um partido muito difícil de manter coeso. Só dois homens o conseguiram. Um foi Ulysses Guimarães.
 
O outro foi Michel Temer, que o preside desde 2001.

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O primeiro empreiteiro do Brasil

Quando prefeito da capital federal, o conde Paulo de Frontin gostava de visitar de surpresa as obras pela cidade. Tinha sempre à cabeça um chapéu coco, vestia fraque e pendurava ao braço, pela ponta curva, seu guarda-chuvas. Era um sujeito magro com os ombros apertados, e cultivava uma barba espessa que já saíra de moda naqueles princípios de século 20. Meio grisalha. Ficou só seis meses no governo do Rio. Era engenheiro, Paulo de Frontin, e gostava de imaginar suas obras ali, no local, riscando com o guarda-chuvas no chão de terra e cascalho os limites, instruindo os técnicos. Por isso, trocou 19 vezes de guarda-chuvas no curto mandato e reinventou a cidade. Nesta segunda-feira, a Andrade Gutierrez reconheceu formalmente, pela imprensa, ter pago propinas a torto e a direito. Pois é impossível compreender a relação do Estado brasileiro com suas empreiteiras sem mergulhar na história deste engenheiro de um século atrás, que foi tanto empreiteiro quanto político.
 
É com ele que a promiscuidade começou.
 
O Império foi um período de estagnação econômica. O Brasil não cresceu, investiu pouco em infraestrutura, era um país moroso. Nos primeiros anos da República, mudou rápido. Havia um espírito no ar de novidades, de modernidade, e muito muito prejuízo para recuperar. Quando teve início o século 20, os portos de Manaus, de Santos e do Rio já haviam sido modernizados. O primeiro era fundamental para escoar a produção de borracha e, o segundo, a de café. Estas foram as principais commodities brasileiras, numa economia que nunca conseguiu ultrapassar esta fase de se sustentar vendendo commodities. Enquanto isso, o porto carioca era dedicado à importação de bens, produtos principalmente europeus, louças e roupas, tecidos e cristais, objetos que enchiam as sofisticadas lojas destinadas à elite da capital. Esta virada de século foi um período de vasta expansão industrial, primeiro no Rio e depois, com mais força, em São Paulo. E à modernização dos portos seguiu-se a atenção para a teia ferroviária.
 
A República, nascida com ideias positivistas e fascinada com o século moderno que chegava, se encantou com os engenheiros. Um país de tantas obras precisava destes homens. A Poli, Escola Politécnica de São Paulo, foi fundada em 1893. A do Rio havia se desmembrado em 1874 da Escola Militar para oferecer cursos de engenharia civil. E, reunidos no Clube de Engenharia, os profissionais formados por estas duas instituições trabalharam arduamente para promover o argumento de que só técnicos seriam capazes de construir um futuro digno para o Brasil. Escreveram estudos cheios de números, fizeram palestras, seminários e, em 1900, um Congresso que atraiu para a plateia até o presidente da República. O Clube ficava a duas quadras do Palácio Monroe, onde funcionava a Câmara dos Deputados. O fluxo entre de políticos que se educavam sobre as questões nacionais era intenso. E, muito rápido, apesar de entidade privada, o Clube de Engenharia tornou-se o principal órgão definidor de que obras o Estado brasileiro deveria realizar. Obras, naturalmente, tocadas por seus sócios. Ninguém, no Clube, tinha maior influência do que André Gustavo Paulo de Frontin. Eleito para sua presidência em 1903, permaneceu no cargo pelas três décadas seguintes.
 
Se o foco da primeira década da República esteve em obras de infraestrutura – portos, ferrovias e saneamento –, isso logo virou. As obras, afinal, dispararam um boom econômico. Havia muita gente enriquecendo rápido. A eletricidade chegou ao Brasil, transformando a vida da classe média alta urbana. No Amazonas, em 1896, foi inaugurado um teatro formidável e exuberante ao passo que fracassou, na década seguinte, a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. A forma venceu a função. Para aqueles novos ricos, mais importante do que a infraestrutura passou a ser a cara das cidades. O Teatro Amazonas não é o único exemplo. O surgimento de bairros novos e elegantes, como Higienópolis, em São Paulo, é outro. Mas em nenhum canto este raciocínio foi mais claro do que no Rio de Janeiro. Era imperativo que a capital perdesse o traçado estreito das ruas coloniais ou o jeitão pacato do tempo do imperador. A cidade inteira precisaria mudar de cara.
 
Paulo de Frontin, que era diretor do conselho das Docas de Santos e presidente do Clube de Engenharia, foi escolhido engenheiro responsável pelo redesenho da capital que ganhou, na atual Rio Branco, sua primeira avenida com cara parisiense. Do governo de Francisco Pereira Passos (1902-06), passando pelo seu, em 1919, e até o de Carlos Sampaio (1920-22), esteve no comando das decisões de que obras públicas deveriam ser realizadas e quem as faria. Muitas ficaram a seu cargo mas nem todas. Neste período, aproveitou-se ainda de uma instabilidade política carioca para estruturar a Aliança Republicana, partido que comandou a capital até o fim da República Velha. Eleito quatro vezes senador, foi quem mais tempo serviu ao Rio no Senado até fusão da cidade com o estado, em finais dos anos 1970.
 
Paulo de Frontin tornou-se um homem rico e criou uma estrutura promíscua entre o público e o privado. Mas há três diferenças importantes.
 
No Rio de Janeiro, o engenheiro foi responsável por obras que, iniciadas na avenida Rio Branco, descem em direção ao sul pela costa, incluindo as avenidas Beira Mar, Praia do Flamengo e de Botafogo, Atlântica, Vieira Souto, Delfim Moreira e Niemeyer, além da urbanização da Lagoa Rodrigo de Freitas. Trata-se, para quem não conhece a antiga capital, de toda a orla pela qual o Rio ganhou fama e que lhe rendeu o apelido Cidade Maravilhosa. Entre as muitas obras está um viaduto na avenida Niemeyer, que separa os bairros do Leblon e São Conrado. Naquele local, quando começaram as corridas de automóvel nos anos 1920, ficavam protegidos pela amurada os jornalistas tomando notas. Foi por isso que ganhou o apelido Gruta da Imprensa. Inaugurado em 1920, o viaduto está inteiro até hoje, nunca sofreu abalo. Mas é justamente naquele ponto que, no início do mês, despencou com semanas de inaugurada uma ciclovia. O desastre matou duas pessoas.
 
As três diferenças: as obras eram, com raras exceções, de imensa qualidade. Frontin pôde distribuir obras entre seus amigos, pôde defini-las, permitiu a uma casta de homens que enriquecessem fácil com dinheiro do Estado. Mas não há registro de superfaturamento ou propina.
 
E, por fim: eram obras bonitas.

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O primeiro estelionato político

Eleito no sábado, Zacarias de Góis assumiu o governo brasileiro numa terça, em 27 de maio de 1862.

Caiu na sexta-feira.

O seu foi o governo mais curto da história. Mas ele voltaria ao comando do país e aquela não seria a pior crise política que enfrentou. Era teimoso, Zacarias. Baiano de Valença, foi um jovem obstinado, daqueles que estudam até tarde para ser alguém um dia. Quando chegou a presidente do Conselho de Ministros pela primeira vez, tinha 46 anos. Substituíra um marquês de quase 60 e sucedeu-o outro marquês, de quase 70. Já Zacarias morreu sem título de nobreza. Irritava-se à toa. “Era um político cheio de arestas, seco como a sua própria figura”, descreveu-o um historiador. Passou a vida um homem magro. “Quando ele se erguia”, escreveu Machado de Assis, “era quase certo que faria deitar sangue a alguém.” Político duro. O homem com coragem para enfrentar o imperador.

Num país que estava nascendo, sua formação política foi como a de um organizador. Indicado para governar o Piauí, aos 30 anos, descobriu que a província não tinha nem secretaria de Fazenda. Criou-a. Na sequência, assumiu o Sergipe para também lá inventar uma estrutura de governo. Fez nascer um sistema de escolas públicas. Virou coringa, daí inventou o governo do Paraná.

A Constituição do Império não era exatamente parlamentarista. Não previa primeiro-ministro. Mas tampouco dizia que era proibido e, com o passar dos anos, o Congresso passou a formar gabinetes de ministros indicando-lhes um presidente. Primeiro ministro sem sê-lo, Zacarias de Góis e Vasconcellos publicou no ano em que chegou ao poder o livro Da Natureza e Limites do Poder Moderador. (Versão em PDF.) Defendia uma monarquia à inglesa, na qual o imperador não teria poder de interferir na política. “Em país livre”, escreveu, “ou o chefe do Estado é responsável, e neste caso decide e governa como entende, ou ele é irresponsável, e então não há função, não há prerrogativa.” Justamente na década de 1860, provocado por ele, iniciou-se um intenso debate a respeito do estranho Poder Moderador outorgado ao simpático monarca, que lhe permitia se meter sempre que o desejasse. Calhou de o livro sair justamente quando dom Pedro II estava no ápice da popularidade. Zacarias assumiu o governo disparando, foi apeado de presto. O imperador tinha pleno direito de vetar quaisquer leis, escolher os senadores em lista tríplice, dissolver a Câmara quando o desejasse, demitir ministros se o quisesse. Suspender juízes. E sua majestade era na lei, tal qual um papa, “inviolável e sagrado”, “sujeito a responsabilidade alguma”. O “gabinete de três dias”, como o apelidou Sérgio Buarque de Holanda, não durou três dias à toa.

Eram dois os partidos durante o Império. Os Conservadores (Saquaremas) e os Liberais (Luzias). Certa vez, um deputado pernambucano sugeriu que não havia “nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”. A frase, muito citada, tem contexto: o período da década de 1850, no qual houve uma política de apaziguamento no país que passara seu período pós independência em convulsões. E, ainda assim, é uma frase que ecoa, que nos enche de sentidos até hoje. Só que o premiê Zacarias era um Liberal do ramo Progressista. Uma de suas crenças pessoais, ditadas também pelo temperamento propício ao confronto, era de que partidos deviam representar ideias em choque. Desejava mudanças.

Zacarias presidiu o conselho de ministros em 1862, durante aqueles três dias, então entre janeiro e agosto de 1864 e, por fim, entre 3 de agosto de 1866 e 16 de julho de 1868. Havia sido eleito por uma diferença de três votos e encontrava oposição até mesmo dentro de seu partido. E aí entram as peculiaridades do Brasil. Porque o ramo progressista era o mais conservador dentre os liberais. Eles desejavam reformas mas seguiam de forma rígida a Constituição, imprensados constantemente entre o partido Conservador e as bases radicais de seu partido. Esta rigidez legalista convinha ao temperamento de Zacarias. Ele contestava com veemência o Poder Moderador e, no entanto, por esta mesma estatura pessoal era a melhor defesa que Pedro II tinha contra os radicais. Aconteceu-lhes, porém, a Guerra do Paraguai. E Zacarias de Góis, no comando do governo, considerava o duque de Caixas um comandante inepto.

Não eram rivais novos. Em seu primeiro e muito curto governo, Zacarias sucedera o marquês de Caxias, agora duque. Anos depois, o comandante do Exército impunha ao imperador uma decisão. Ou se demitia ele ou se demitia o premiê. Pedro II compreendia, torturado, exatamente a posição em que se via. Era ceder uma decisão de governo à chantagem do comandante do Exército. Pois cedeu. Um deputado liberal radical chamou o ato de “estelionato político”. Era Joaquim Saldanha Marinho, que em pouco tempo se filiaria ao nascente grupo republicano. Ali nasceu o republicanismo.

Estelionato político, estelionato eleitoral, aqui e ali o Brasil se repete.

Anos Dourados em tempos de crise

Em janeiro de 1956, o Brasil estava mergulhado em uma das mais graves crises políticas da República. No espaço de um ano e meio, o país teve quatro presidentes. Getúlio Vargas matou-se em agosto de 1954, seu vice João Café Filho foi afastado por um infarto, o presidente da Câmara Carlos Luz sofreu impeachment enquanto tentava organizar um Golpe de Estado e o vice-presidente do Senado, Nereu Ramos, foi indicado pelo Congresso para completar o mandato. No centro da crise estava o governador mineiro Juscelino Kubitschek de Oliveira que, tendo vencido a eleição para presidente por uma margem estreita, encontrava cada vez maior resistência. Haviam muitos, e poderosos, que não desejavam sua posse. Naquele janeiro, buscando garantir seu mandato, JK tomou a decisão de viajar para o exterior.
 
Vivemos um tempo amargo, no qual a estrutura política brasileira derrete. A história não oferece lições, mas permite paralelos. O Brasil já teve um presidente com o carisma de Barack Obama num tempo anterior às redes sociais. Já conseguiu fazer a transição de um período de imensa crise para, em muito pouco tempo, estabilidade e otimismo. JK é ainda mais impressionante pois, entre 1950 com a eleição de Vargas, e 1994, com a de Fernando Henrique, foi o único presidente eleito a cumprir o mandato inteiro. Não é um feito pequeno.
 
Naquele janeiro, ainda um mês antes da posse, JK tinha a necessidade de começar a agir como chefe de Estado perante os brasileiros. Sem jamais mencionar que havia uma crise séria, mostrou-se no comando. Nos EUA, foi recebido pelo presidente Dwight Eisenhower, na Casa Branca. Mais importante do que a conversa foi a cobertura feita pela imprensa, rica em imagens. Acompanhou-o uma equipe do diretor Jean Manzon, que preparou filmetes para exibir no cinema. Também estavam ao seu lado repórter e fotógrafo da recém-lançada revista Manchete.
 
Havia uma ânsia de modernidade e transformação naquele Brasil. Getúlio, com toda sua popularidade, governara o país por 18 dos últimos 25 anos. “O pai patriarca à antiga”, escreveu o biógrafo Cláudio Bojunga, “fora sucedido pelo presidente leve, dinâmico, liberal, inquieto.” Se o velho caudilho era um nacionalista convicto, desconfiado do capitalismo, JK era cosmopolita e tinha planos para uma rápida industrialização. Principalmente para a Manchete, uma revista ilustrada jovem para o tempo imediatamente anterior à TV, esta visão otimista de Brasil caía como uma luva em seu projeto editorial. Mas o projeto da Manchete não surgia do vácuo. Representava um desejo da sociedade. E JK teve a extrema habilidade de moldar-se aos sonhos difusos do brasileiro.
 
Manter a estabilidade não foi trivial. JK pertencia ao PSD, uma espécie de PMDB atual. Seus líderes eram uma mistura de interventores nos governos locais do período do Estado Novo com as famílias que compunham as lideranças regionais da República Velha. Havia sido eleito em aliança com o PTB, que inaugurara a relação entre sindicatos e políticos no Brasil. Eram, ambos, partidos criados por Getúlio. Durante o governo, o presidente enfrentou greves sérias, que o PTB conseguiu negociar antes que terminassem em confrontos com a polícia na rua. Lidou, também, com duas rebeliões militares. E, tendo-as desfeito, anistiou imediatamente todos os envolvidos. Juscelino fazia uma política de panos quentes e sorrisos, como se nada pudesse atingi-lo.
 
O mais difícil, no entanto, foi lidar com o principal grupo de oposição, a UDN. O partido, que do centro nos anos 1940 deslocara-se para a centro-direita, fazia uma oposição agressiva, com denúncias constantes de escândalos. (Que não eram poucos.) Seu núcleo no Congresso ganhara da imprensa o apelido Banda de Música e lembrava mais o PT dos tempos de Collor, Itamar e FH do que a atual oposição de pouca espinha. “Eu sabia que uma aliança com o PTB era imprescindível”, lembraria Juscelino, “pois somente uma aliança muito forte poderia enfrentar a oposição e sair vitoriosa.” Seu vice era João Goulart, o herdeiro de Getúlio. Se por um lado atraía a ira da direita, por outro espalhava uma teia de apoio rural (via PSD) e urbano (PTB).
 
A estratégia política de JK foi brilhante. Ele instituiu o que chamava Plano de Metas, com trinta propostas para produzir aquilo que em sua campanha presidencial resumira como 50 anos em 5. Este plano ficava sob o comando do Conselho de Desenvolvimento, responsável pela execução. O Conselho podia recorrer a técnicos de todos os ministérios, além das estatais. Desta forma, o Conselho era o braço administrativo do governo, permitindo ao presidente que fatiasse os ministérios de acordo com os critérios fisiológicos de sempre, consolidando a base no Legislativo. Havia, como conta a professora Maria Victoria Benevides, dois governos. Um administrava, o outro arcava com o peso da tradição patrimonialista.
 
Juscelino, seu sorriso largo, conseguiu driblar o Brasil para governar. Também aumentou a dívida pública – e em muito. Mas não é possível negar-lhe o feito de ter sido capaz de governar, e de tocar o mandato presidencial democrático mais ambicioso da história brasileira, num tempo de profunda instabilidade.

Como foi inventado o impeachment?

A história do instituto do impeachment inclui um barão medieval, testamenteiro do rei e traidor, o castelo onde nasceu uma santa e até um baixinho mulato invocado, nascido no Caribe, mas que ainda assim foi parar na nota de dez dólares.
 
Em 28 de abril de 1376, a Inglaterra não tinha rei. O futuro Eduardo II era jovem demais para assumir o trono. O príncipe era bisneto de João Sem Terra. Aquele mesmo, irmão de Ricardo Coração de Leão, inimigo nas lendas de Robin Hood. E, de forma mais ou menos similar à lenda, na ausência de um rei quem governava a Inglaterra era outro príncipe João, seu tio. A Magna Carta, primeiro arremedo de constituição, era coisa nova. O documento, que limitava os poderes do rei, fazia certas exigências. Para lançar uma arrecadação de impostos, por exemplo, sua majestade precisava antes formar um Parlamento.  Só que, uma vez convocado, o Parlamento poderia se meter nos desígnios reais. Conceito muito inovador para a Idade Média. O príncipe João não era nada popular e havia anseio para que Eduardo II chegasse ao trono. João não queria convocar os barões para ocupar a Câmara. Temia suas decisões. Mas precisava de dinheiro. Então convocou-os. Não era um conselho fixo, só se reunia a pedido do rei, mas aquele conjunto de nobres que chegou a Londres em 28 de abril foi incomum. Marcou época. Vieram dispostos a fazer uma limpeza no conselho real. Entraram para a história como o Bom Parlamento.
 
Foram estes homens que procederam com o primeiro impeachment da história. A vítima: William Latimer, quarto barão Latimer. Testamenteiro do rei Eduardo I, acusado de corrupção. Vendera sem autorização, por exemplo, o Castelo de Saint-Sauveur de volta para os franceses. (Foi neste castelo que nasceria santa Catarina de Santo Agostinho, uma das primeiras colonizadoras de Québec.)
 
Nobres nunca eram condenados a nada. Isso começou a mudar com a Magna Carta e para eles é que nasceu a ideia de impeachment. O instituto não poderia ser aplicado ao rei. Mas o colegiado de nobres tinha autorização de condenar um de seus pares. Uma maneira primitiva de aplicar justiça a gente com poder.
 
O nosso impeachment é bastante posterior. E sua história começa numa barraca da Guerra Revolucionária que daria aos EUA sua independência. Nela está o general George Washington e, a seu lado, um rapaz de vinte anos de pele um tanto escura. É muito lido, o rapaz, até brilhante. Nascera no Caribe, criado em Nova York e sua mãe, diziam os rumores, gostava de passar a noite na companhia de seus escravos. Por isso o marido se divorciou. O jovem ajudante-de-ordens de Washington galgaria muitos degraus e, estourado como só, faria muitos inimigos. Era do tipo que se metia em duelos. (Até morreu num.) Do tipo que tinha tudo para virar presidente. Mas nunca o foi. Venceu-o nessa disputa seu principal inimigo intelectual, Thomas Jefferson.
 
Chamava-se, o rapaz, Alexander Hamilton.
 
Hamilton, nos anos anteriores à Constituição Americana, ajudou a escrever uma série de panfletos anônimos que muito influenciariam o debate sobre aquele país. Estavam, coletivamente, inventando o que ia ser uma república. Como se faz uma democracia. E, num dos panfletos, o Federalist Paper de número 65, Hamilton foi buscar na Inglaterra o conceito primitivo de impeachment.
 
Imaginar um sistema de governo inteiro não é trivial e ele tinha um problema por resolver: como se faz quando é necessário expurgar um governante? Quando, de alguma forma, o governante quebra a confiança popular? “O julgamento destes casos”, ele escreveu, “não vai falhar em agitar as paixões da comunidade e dividir o povo em partidos.” De início, se perguntou se não seria um caso para a Suprema Corte. Decidiu que não.  Colegiado pequeno. Para julgar o presidente era preciso mais gente. Mais cérebros. Escolheu, para o julgamento, o Senado. A Casa mais sofisticada do Congresso. Havia outro argumento: o impeachment não aplica penas comuns ao mundo jurídico. Não há multa ou prisão. A pena é a cassação dos direitos políticos. Fazia sentido, então, uma corte política.
 
Hamilton cogitou unir, em sessão conjunta, Senado e Suprema Corte. Preferiu trazer o chief-Justice, equivalente ao presidente do Supremo, para presidir o julgamento dos senadores.
 
Alexander Hamilton, o homem cujo rosto aparece na nota de dez dólares, compreendia que um julgamento no Senado seria um julgamento político. “Causa para impeachment”, diria bem mais do que um século depois o deputado Gerald Ford, “é qualquer uma que a Câmara decida justificável.”
 
Ford terminaria na presidência substituindo Richard Nixon.
 
O método inventado pelos ingleses medievais para punir nobres foi adaptado por Alexander Hamilton para o presidencialismo. O Brasil simplesmente o copiou. Os representantes do povo, deputados federais, aceitam uma acusação e a apresentam para o Senado. O Senado escolhe julgar ou não, aí convoca acusação e defesa, com o presidente do Supremo no comando. Um julgamento que, na concepção de seu inventor, devia ser político.

E o impeachment no Brasil?


Quem vê as autoridades da República, de um lado e do outro, com muitas convicções pode até deixar-se enganar. Mas o impeachment tem muitas penumbras, indefinições.

Ele sempre existiu, em todas as constituições republicanas. Aqui está um resumo (PDF) do que dizem os especialistas que mergulharam em nossa jurisprudência. O que fez isso mais recentemente foi Paulo Brossard, ex-ministro do Supremo. Publicou um texto em 1992. Concordava com Hamilton:

 

“Entre nós, porém, como no direito norte-americano e argentino, o impeachment tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e é julgado segundo critérios políticos, julgamento que não exclui a adoção de critérios jurídicos.”

Há quem discorde.

O que os EUA têm que nós não temos?

Ambos são países continentais. Distantes da Europa, foram ambos povoados por europeus, adotaram línguas europeias, embora, em suas terras, já vivesse um povo nativo. Ergueram-se com trabalho escravo africano. Tornaram-se repúblicas. Tiveram corridas do ouro. Em suas semelhanças, são únicos. E, no entanto, Brasil e Estados Unidos terminaram bastante diferentes. O porquê é polêmico. Mas um dos autores que mergulhou mais fundo neste debate é raramente lembrado fora dos meios acadêmicos: o gaúcho Clodomir Vianna Moog, que em 1955 publicou Bandeirantes e Pioneiros. Não é um livro difícil de achar nas livrarias. (Aqui, na Amazon.br ou, para quem preferir, há um bom resumo online.)
 
O fascínio com os EUA não é uma constante na história brasileira. Ele foi intenso na Minas dos anos 1780, época em que os inconfidentes devoravam tudo o que seus contemporâneos escreviam sobre a revolução dos americanos ingleses. Durante o Império, o fascínio mudou de lado e recaiu nos ingleses. Mas, da República para cá, apesar de flertes com França ou mesmo Alemanha, o exemplo norte-americano é o único constantemente lembrado por quem busca (com ou sem razão) uma ideia de Brasil alternativo, um exemplo a seguir.
 
Moog sugere algumas explicações interessantes. E começa com a geografia. Quando os ingleses chegaram à costa atlântica da América do Norte, encontraram quilômetros e quilômetros de planície. Os portugueses, por sua vez, depararam-se com escudos como as serras do Mar, da Mantiqueira e do Espinhaço, que nos séculos 16 e 17 dificultaram imensamente a ocupação do interior. O problema não é só geológico, é também hidrográfico. A bacia do Mississipi banha a maior superfície contínua de terras cultiváveis que existe. Não há equivalente brasileiro. Apenas navegando por rios e lagos é possível ir de Nova York a Chicago ou ao Canadá, de Minnesota a Nova Orleans. Nem o São Francisco, interrompido pela cachoeira de Paulo Afonso, oferece navegabilidade igual. Ocupar o território americano e transportar produtos de um canto ao outro do país foi fácil e barato. No Brasil, não.

Há também a questão paralela do clima e dos recursos naturais. Europeus sabiam lidar com climas temperados mas não com tropicais. Além disso, o clima tropical tem um defeito (por incrível que pareça) terrível: é quente. Não requer calefação. Uma sociedade que não precisou correr atrás de calefação não investiu, nos séculos de formação, na tecnologia que seria necessária para disparar o processo industrial. E é aí que bate a questão dos recursos. Rico em ferro, o Brasil é pobre em carvão mineral. Em meados do século 17, quando surgiram aqui e ali as primeiras indústrias, estávamos vendidos. Nem tecnologia para grandes fornos, nem carvão.
 
O argumento de Moog, porém, não culpa apenas a roleta russa natural. O bandeirante e o pioneiro eram tipos de todo distintos. Embrenhando-se no meio do mato, o bandeirante desejava caçar índios para escravizar, descobrir riquezas, pegar o que desse e voltar para casa. Sonhava em tornar-se rico e voltar ao reino. Os portugueses vinham para o Brasil sem suas mulheres. Estavam de passagem. Os pioneiros, não. Mudaram-se com suas famílias. Conforme foram lentamente avançando em direção à costa pacífica, iam fixando-se. Precisavam construir uma vida decente ali.
 
A diferença não estava apenas nas estratégias de Portugal e Inglaterra. Portugal era um país pequeno, de população pequena, que jamais conseguiria implementar um grande projeto de povoamento. A Inglaterra tinha muito mais gente. Gente e guerras. Revoluções e revoltas sangrentas, por disputas sucessórias e religiosas, uma instabilidade que contribuía como incentivo para emigração definitiva.

Em 1820, o Brasil tinha uma população de 4,7 milhões. Os EUA, de 9,6. Em 1860, década da Guerra Civil lá e do Paraguai, aqui, chegávamos a 8,4 milhões de brasileiros. Contra 31,4 milhões de americanos. São braços produzindo riqueza. Riqueza mais barata de transportar.
 
Em 2020, seremos 220 milhões contra 335 milhões.

O PMDB e a República Velha em nós

Há uma teoria corrente em Brasília que segue assim: se acontecer de Michel Temer chegar à presidência, um dos primeiros ministros que nomeará é Nelson Jobim. Jobim é daqueles políticos das emergências. Inteligente, culto, sabe muito bem usar autoridade. Resolve as coisas. Assumiria, possivelmente, a pasta da Justiça. E cuidaria para, lentamente, fazer com que a Operação Lava Jato deixasse de ser um problema. Segundo esta teoria, não é que Dilma não tenha querido interferir na operação. Faltou-lhe competência na arte do exercício de poder. Jobim é profissional.
 
Criamos o hábito, ao longo dos últimos anos, de chamar o PMDB de partido fisiológico. A afirmação não é incorreta, mas é imprecisa. Há fisiologismo em praticamente todos os partidos brasileiros. O PMDB é mais do que isso: ele representa algo que nunca deixou de existir. É a República Velha dentro de nós. E um governo Temer teria muito de um revival.
 
Chamamos políticos tradicionais nordestinos de coronéis e alguns gaúchos populistas de caudilhos. Ambos os termos remetem ao confuso período entre Império e República. Em um tempo no qual o Exército era pequeno e pouco confiável, logo após a Independência, o governo instaurou a Guarda Nacional. Era uma força militar paralela. Cada homem rico de uma região, se agraciado com a patente de Coronel da Guarda Nacional pelo imperador ou presidente, teria o direito de formar uma tropa armada. Metade dos homens que lutaram na Guerra do Paraguai pertenciam à Guarda Nacional, não ao Exército. E, regionalmente, um exército particular juntava-se à posse de terras e dinheiro para consolidar o poder dos chefes locais. Caudilhos, na América do Sul espanhola, eram a mesma coisa. Chefes regionais com poder militar. Embora mais argentinos e uruguaios do que brasileiros, no início da República houve caudilhos gaúchos importantes, como Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.
 
O Brasil da República Velha era fundamentalmente agrícola. (Indústria só em São Paulo e um pouco no Rio.) Entre 1900 e 1920, 65% dos brasileiros com mais de 15 anos eram analfabetos. (O índice só chegou aos 50% após a Segunda Guerra.) A classe média urbana era minúscula. Como se governa um país assim? Foi feito um pacto dentro da elite para que ninguém se intrometesse no poder de cada chefe local. Muitos chamam aquele período de República dos Governadores. Ou República Oligárquica. Mas cada estado era formado por bolsões de poder regional, cada região com seu coronel. Os coronéis decidiam quem o próximo governador seria e os governadores indicavam o presidente. Num ambiente de eleições plenamente fraudadas, funcionava.
 
(A cada dois ou três anos no período houve pelo menos uma grande explosão de revolta popular. O jogo jamais foi estável.)
 
Assim descrito, parece puramente fisiológico. Mas não era só isso. Havia preocupação com qualidade técnica do governo. Vai além: o pacto não era só entre coronéis. Era entre coronéis e os bacharéis, apelido da elite intelectual-administrativa brasileira. Uns não se metiam com os outros e todos governavam juntos.
 
Gilberto Freyre, nosso primeiro grande intérprete de nação, gostava de revelar as estruturas sociais brasileiras não só pelos jogos de poder mas também pelos tipos físicos e humores. Franzinos com a cabeça grande, Rui Barbosa, Santos Dumont ou o marechal Cândido Rondon simbolizavam uma espécie de David brasileiro contra os Golias do mundo, pequenos mas astutos. Não eram, porém, os únicos tipos da jovem República. O barão do Rio Branco e João Pandiá Calógeras, por exemplo, eram homens altos e corpulentos, que sabiam usar o espaço físico que ocupavam para se impor. Eram, também, muito cultos. Diferentemente dos homens miúdos, transpiravam autoridade. Tinham comando. Calógeras, em particular, era também um coringa. Ocupou três pastas: Agricultura, Comércio e Indústria (que era um só ministério), Fazenda e Guerra. Era um daqueles homens chamados para resolver problemas. E, em geral, resolvia.
 
Nelson Jobim, que além de ter presidido o STF, foi ministro da Justiça de FHC e da Defesa de Lula, é um político da Velha República. O coringa que chega para resolver as coisas do jeito que sempre se fez. Como na República Velha, não importa quem preside o país, os coringas estão sempre lá.
 
No PMDB há bacharéis, como Jobim e Temer, e há os oligarcas.
 
O primeiro engenho da família Calheiros, em Alagoas, data de 1730. O presidente Floriano Peixoto era descendente dos Calheiros de Mello. Sim: Mello. Como Fernando Collor de Mello. Avós e bisavós do presidente do Senado foram coronéis e majores da Guarda Nacional. O apelido de seu pai, aliás, era ‘major’ Olavo. Sua mãe, que é viva, se chama dona Ivanilda Vasconcelos. O primeiro casamento entre um Calheiros e uma Vasconcelos não foi o de seu Olavo. Foi o de João Gomes de Mello Calheiros com Sebastiana de Vasconcellos. É o casal que chegou a Alagoas em 1730. É assim que se faz uma oligarquia.
 
Romero Jucá é Romero Jucá Rego Lima. Embora o senador tenha nascido em Pernambuco e feito carreira política em Roraima, os Rego são uma oligarquia paraibana. Vital do Rego, atual ministro do TCU que veio do PMDB, é seu parente um quê distante. Lá atrás, Tobias do Rego Monteiro, que foi senador pelo Rio Grande do Norte, começou a carreira como chefe de gabinete de Rui Barbosa. O grande escritor paraibano José Lins do Rego não escreveu um romance chamado Menino de Engenho à toa.
 
Rastreia-se o comando do PMDB principalmente no Centro Oeste, Nordeste e Norte e vê-se a República Velha. Oligarquias antigas, que mantiveram seu poder regional desde o sempre. Não é exclusividade do PMDB. Mas o PMDB é uma República Velha inteira encapsulada num partido. E isto quer dizer uma lógica, um jeito de governar.

De certa forma, esta é a tragédia do PT: o partido que, acreditando estar no comando, foi engolido pela mais antiga máquina política brasileira. O Brasil, dizia outro Jobim, não é para amadores.

No tempo dos canibais

Só porque, às vezes, mudar de assunto é bom: o quanto você conhece sobre os tupis, maior grupo indígena que vivia no Brasil? Na escola, aprendemos quase nada. Só que viviam nus. E, mais por conta do professor de literatura do que do de história, que eram antropófagos. Pois boa parte do que sabemos é bem recente, conta dos anos 1950 para cá.
 
Um homem só era considerado adulto, apto para casar, após ter matado um inimigo pela primeira vez.
 
Sim: um assassinato faz o homem.
 
Em estando apto e tendo se interessado por uma moça, precisava fazer a corte da candidata a sogra. Fazia favores: caçava, pescava, trabalhava. Tendo sido aprovado, ela o recomendava ao futuro sogro. Caçava, pescava, trabalhava mais. O processo poderia durar até três anos e não era garantido. Mas, se casasse, logo tinha filhos. E, se desse sorte, conseguiria com o tempo uma segunda mulher. A primeira, aliás, se empenhava neste propósito. Era alguém com quem dividir o trabalho. A maioria, no entanto, só conseguia casar com uma.
 
O status se dava por três características. Um homem com muitas mulheres tinha, por isso, muitos filhos e genros. Aqueles com comando das maiores famílias eram morubixabas. Principais. E viviam, todos, em uma grande maloca comprida. As aldeias formavam-se de quatro a oito destas malocas. No total, podiam somar até três mil habitantes.
 
Essas aldeias não viviam isoladas. Havia inúmeras aldeias vizinhas, quase sempre aliadas, e costumavam viver próximos ao litoral. Em meados dos 1500, entre Paraná e São Paulo viviam tupiniquins. Na região do atual Rio, tupinambás, no Espírito Santo tupiniquins e novamente tupinambás num bom naco da Bahia. De lá para cima, kaetés até quase o Sergipe e então, chegando ao Ceará, potiguares. Falavam a mesma língua, tinham a mesma dieta, faziam a mesma cerâmica. Gente igual. Mas uns inimigos dos outros. Foram tupinambás baianos os primeiros índios que a turma de Cabral encontrou. Eram tupiniquins os aliados dos jesuítas que ajudaram na fundação de São Paulo e do Rio.
 
Grandes líderes cujos nomes nos soam familiares como Tibiriçá (São Paulo), Araribóia (Rio) ou Cunhambebe (de Angra, que prendeu Hans Staden) não mandavam sequer em suas aldeias. A hierarquia tupi limitava o poder dos morubixabas às malocas, a casa onde viviam suas famílias estendidas. As coisas das aldeias e aldeias vizinhas se definiam num conselho destes chefes. Mas há um caso curioso, que é o do Cerco a Piratininga que quase fez cair a recém-nascida São Paulo. Nove de julho de 1562. Foi um ataque promovido pelo grupo que terminou conhecido como a Confederação dos Tamoios. Incluía, de forma organizada, um grande número de aldeias tupinambás.
 
Alguns antropólogos acreditam que, acaso os portugueses demorassem um pouco mais a chegar, os tupis teriam chegado a um processo de centralização política e, daí, poderiam tornar-se uma civilização.
 
(E, sim: o 9 de julho paulista é importante há bem mais tempo do que os revolucionários de 32 o imaginavam.)

O primeiro Golpe brasileiro

Ninguém registrou o dia, mas o mês era março, em 1840. Pedro de Araújo Lima tinha 46 anos quando chegou ao Palácio Imperial, afastado do centro do Rio alguns quilômetros. Um homem calvo de cabelos castanhos e os olhos azuis tão comuns na elite pernambucana. Regente do Brasil. Alguns historiadores descrevem este período, entre a abdicação de Pedro I e a ascensão de seu filho, como um flerte do país com a República. De certa forma, Araújo Lima era um presidente. Mas não tinha planos de continuar no cargo. Estava ali, em São Cristóvão, com uma proposta para o príncipe herdeiro. Planejava um Golpe de Estado.
 
Aos 14 anos, o futuro monarca falava com uma voz esganiçada, tinha as pernas muito finas e o queixo comprido, sina de quase todo Habsburgo. Mais tarde, quando a fase imberbe passou, deixaria a barba disfarça-lo e ganharia cara de homem. Agora, não. Era bem menino. O regente explicou-lhe o plano em detalhes e então perguntou sua opinião. “Não tenho pensado nisso”, respondeu-lhe o príncipe, conforme descreve a historiadora Lilia Moritz Schwarcz em As Barbas do Imperador. Araújo Lima, que ainda demoraria uns anos para se tornar Marquês de Olinda, ficou surpreso. “Vossa Majestade não tem pensado no negócio?”, perguntou. “Já tenho ouvido falar mas não tenho dado atenção.”
 
Pedro I abdicou em abril de 1831, quando seu filho tinha 5 anos e o país independente ainda não havia completado 8. A Constituição de 1824 definia que a maioridade para assumir o trono só ocorreria aos 21 mas, dada a surpreendente ausência de um imperador, reformou-se a lei para fixa-la aos 18. De pouco adiantou: com aparência de acéfalo, o país entrou em convulsão. Explodiram inúmeras revoltas do Pará (Cabanagem) ao Rio Grande (Farroupilha), incluindo Maranhão (Balaiada), Bahia (Sabinada e Malês), Minas (Carrancas) e Rio (Manuel Congo).
 
Para tentar sufocá-las, os regentes que gerenciaram o Estado durante aqueles nove anos não pararam de trabalhar um segundo. Porque o trabalho não era pouco. O Brasil, tão jovem, estava sendo inventado e o maior medo dos políticos é que ele se espatifasse como ocorrera na América espanhola. Se Pedro I havia imaginado um país de poder centralizado, as revoltas todas passavam uma mensagem distinta, embora confusa. As províncias queriam mais autonomia. E os regentes, acuados, fizeram de tudo para concedê-la. Foram criados poderes legislativos locais. Instaurou-se a Guarda Nacional, regimentos militarizados sob controle da elite local e independentes dos militares. Mas as tensões persistiam. Algumas das rebeliões, ainda por cima, eram levantes abolicionistas.
 
Apavoradas, as elites econômicas percebiam o risco de perder o status e o mando.
 
Não é à toa que consideravam os regentes frágeis. Dentre os maiores medos estava o de que a monarquia entrasse em ruína e, dela, nascesse uma república de fato com direitos distribuídos. Nem os políticos conservadores, nem os liberais, desejavam algo do tipo. Uns, conservadores, uniram-se em torno do Partido Regressista. Defendiam o regresso de Pedro I. Os liberais, como Araújo Lima, puseram-se a trabalhar pela antecipação da maioridade. E trabalharam duro, cercando de simbolismos o príncipe. O último regente estabeleceu a cerimônia do Beija-Mão, e foi o primeiro a beijá-la, tentando mandar o sinal de que havia algo acima de seu cargo. Os políticos não eram lá muito bem vistos, mas o príncipe era querido.
 
Foi um “Golpe Parlamentar da Maioridade”, nas palavras de Bernardo de Vasconcelos, o senador conservador que ocupava a pasta de ministro de Estado e de Negócios. A expressão golpe, assim, entrava no vernáculo brasileiro. Vasconcelos tentou evita-lo, adiando a formação da Assembleia Nacional. Foi bombardeado. Havia clamor popular pela ascensão do imperador. Na história oficial, o diálogo do príncipe com Araújo Lima ficou registrada de outro jeito. “Quero já”, teria respondido o rapaz. Era preciso que ele parecesse decidido e não o rapaz introvertido que de fato era, isolado num palácio, dedicado aos estudos e completamente alienado da vida pública. Os políticos passaram aqueles nove anos de regência discutindo em seu nome e o jovem Pedro mal se importava.
 
A Assembleia terminou formada e aprovou lei antecipando a maioridade. A Constituição, porém, não lhe dava direito de fazê-lo. Os liberais conseguiram burlar a Carta porque, no fim, para os conservadores a maioridade se mostrou um mal menor perante a insegura continuidade das regências. Ao ser coroado, em 18 de julho de 1841, tinha 15 anos de idade.

Deu certo em seu objetivo: o Segundo Império foi um período de paz entre as convulsões da regência e da República Velha.

Mas o que é um Golpe de Estado?

É curioso que Bernardo de Vasconcelos tenha chamado de Golpe Parlamentar a Maioridade. Foi realmente um Golpe e a expressão já era usada com muitos sentidos desde meados do século 18. Mas a consagração mesmo, do francês coup d’état, veio dez anos após, em 1851. Foi quando Louis-Napoleon Bonaparte dissolveu a Assembleia Nacional, instaurando novamente o Império e sagrando-se Napoleão III.
 
Golpe de Estado tem definição muito específica. (Há um um bom estudo sobre o tema para quem desejar.) Ocorre quando um dos órgãos do Estado, de forma inconstitucional, assume o poder. Golpes quase sempre contam com o apoio das Forças Armadas – quando não são elas próprias que o perpetuam. Golpes servem para perpetuar no poder um grupo que se sente de alguma forma ameaçado. Pode, ou não, contar com o apoio da sociedade.
 
É o que ocorreu no caso da Maioridade: um órgão do Estado (o Parlamento), com apoio tácito dos militares, aprovou uma lei inconstitucional para mudar o regime de forma a garantir o poder de elites que se sentiam ameaçadas. Aliás: foi só Pedro II assumir o trono e os legislativos provinciais foram dissolvidos, retornando o país a uma centralização. Não era o jovem imperador quem estava no comando, claro.
 
Houve muitos Golpes de Estado no Brasil desde então. A lista indiscutível é esta: em 1889, a Proclamação da República foi um Golpe Militar. Como foi também um Golpe Militar, em 1930, o fim da República Velha. Getúlio Vargas foi levado ao poder por este Golpe, deu ele próprio um segundo, em 1937, ao instaurar o Estado Novo outorgando-se poderes ditatoriais. Foi apeado por um terceiro Golpe Militar, em 1945. O Golpe Militar seguinte ocorreu em 1964.
 
Há pelo menos dois casos muito sutis nos quais os mais rigorosos podem sugerir que tenha havido Golpe. Em 1961, o Congresso Nacional alterou as regras vigentes para instaurar um regime parlamentarista, evitando que João Goulart pudesse presidir com os poderes que seu antecessor tivera. O Congresso tinha poderes constitucionais para fazê-lo. Mas a tradição sugere que leis não deveriam retroagir. Mudar as regras por conta de um presidente específico cheira mal. Outro caso similar, embora mais complexo, foi o da aprovação da Emenda Constitucional nº 16, de junho de 1997. Instaurou a reeleição. Pelo mesmo argumento, deveria valer apenas para o presidente e os governadores eleitos no ano seguinte. Mas é um argumento bem mais frágil. Afinal, ninguém chegou a um segundo mandato sem ter, antes, passado por uma eleição.

A esquerda no poder

Quando tudo passar, a esquerda brasileira terá um desafio. Não é o de explicar seu envolvimento com corrupção. Nossa corrupção é democraticamente distribuída e nunca teve preconceitos ideológicos. Seu desafio maior será compreender por que, tendo tido a oportunidade, o PT não fez um governo de esquerda. Na Reforma Agrária, assentou em média menos famílias por ano do que o governo tucano. A política econômica se mostrou, durante boa parte do período, mais preocupada com banqueiros e grande indústria. Adotou uma política energética obsoleta. Fechou os olhos para a questão indígena. Sequer tentou avançar na ampliação de direitos LGBT. Não encarou o problema carcerário ou a brutalidade policial voltada contra os mais pobres. Não houve melhoras notáveis no ensino ou saúde públicos. A legislação ambiental saiu de bandeja para a agroindústria. Governo, sugerem os mais cínicos, é como violino. Pega com a esquerda, toca com a direita.
 
A história, tomando emprestado conceitos da ciência política, ajuda a explicar.
 
A República teve dois períodos realmente democráticos. Entre 1945 e 64 e, agora, desde 1985. Deste total, somando-se os governos Getúlio, Jango, Lula e Dilma, chegamos a 19 anos, contra 21 do resto. Há equilíbrio. Se Dilma terminar o mandato, é 22 contra 21. (Quem põe o PSDB na coluna esquerda transforma o empate em goleada.)
 
Uma definição cabe: governos existem para garantir bem-estar social e ordem. O problema é que um se atrita com o outro a toda hora. Grupos desfavorecidos, afinal, só têm uma arma para reivindicações: incomodar. O MST invade fazendas. Estudantes ocupam escolas. Comunidades carentes interrompem o tráfego. Ambientalistas bloqueiam tratores. As escolhas não são absolutas. Em um caso pode-se optar por um e, dada uma circunstância diferente, pelo outro. Mas é na escolha entre reivindicações e ordem que se distinguem esquerda e direita. Quanto maior a frequência de escolha da ordem, mais à direita. É uma definição clássica.
 
Por esta definição, o primeiro movimento de esquerda no Brasil foi o abolicionismo. Nas três décadas iniciais do século 20, cresceram e se impuseram, principalmente em São Paulo, os anarquistas. Houve inúmeras revoltas populares, como a da Vacina, da Chibata, Canudos ou Contestado. Busque, porém, na produção acadêmica artigos contando a história da esquerda. Começam, quase todos, com a fundação do Partido Comunista Brasileiro.
 
O comunismo teve um momento de muita força, na década de 1930, quando em meio a uma severa crise econômica eleitores em todo mundo se lançaram em braços radicais. À direita, o fascismo também cresceu. Mas, se em lugares como a Espanha, o anarquismo não arrefeceu, no Brasil acabou. O comunismo se impôs e ocupou espaços pelas décadas seguintes, sufocando alternativas. Entre trotskistas e maoístas, stalinistas e albaneses, todos os debates intelectuais à esquerda se concentraram dentro do comunismo.
 
O comunismo capturou a imaginação de esquerda.
 
Foi Getúlio Vargas quem abriu espaço para uma alternativa: o trabalhismo, com longa vida do Estado Novo ao PTB e de lá ao PDT.
 
O comunismo foi uma aposta contra a democracia. Acreditava que um regime democrático baseado no capitalismo não seria capaz de promover bem-estar social. Perdeu duplamente a aposta. Regimes comunistas não foram capazes de se sustentar e o capitalismo se tornou mais humano.
 
Já o trabalhismo se ergueu sobre dois grupos: sindicalistas e funcionários públicos. É um movimento capaz de trabalhar dentro da democracia. Mas é corporativista, depende da garantia de privilégios para estes grupos. Em troca, cria uma extensa rede de apoio ao governo na burocracia e entre trabalhadores organizados. Vargas herdou da República Velha um regime que viveu trinta anos em convulsão social contínua, rebeliões a toda hora. Criou um espaço político para operários e a, naquela época, jovem classe média técnica. Trouxe algum equilíbrio num ambiente onde só oligarcas tinham poder. Apaziguou o Brasil.
 
Mas, entre comunismo e trabalhismo, qualquer outro tipo de esquerda foi sufocado. E é aí que entra teoria política, com a ajuda de um excelente artigo do professor Luiz Carlos Bresser-Pereira (PDF). Porque, em geral, a esquerda se divide em quatro campos. O primeiro é a Esquerda Revolucionária. Comunistas. O segundo, a Esquerda Burocrático-Sindical. O que chamamos, por aqui, de trabalhismo. Há a Esquerda Utópica. Como os comunistas, tem dúvidas de que a democracia capitalista gere bem-estar social. Mas não são revolucionários, jogam por fora, em ongs ou outros grupamentos, mergulham na sociedade em busca de mudanças. E, por fim, há a Centro-Esquerda, que já foi social democrata e hoje pensa uma esquerda liberal.
 
A captura da imaginação da esquerda feita pelo comunismo foi reforçada pela Ditadura. Quando voltou a democracia, nossas únicas referências persistiam sendo comunismo e trabalhismo. Como se a evolução política da esquerda tivesse parado na década de 1940. A diferença é que, aqui, não nasceram grupos de pressão à esquerda.
 
Um governo sofre pressões constantes de grupos de interesse. Federações de indústria ou bancos, por exemplo, ou agronegócio. Faz parte do jogo democrático. Na Europa ocidental ou nos EUA, grupos de defesa de direitos civis, ou feministas, ou ambientalistas, ou não importa o quê, são igualmente fortes, e têm raízes profundas na sociedade. Esta base estrutural de pressão não foi formada no Brasil. A cultura de se organizar politicamente dentro da sociedade mal existe.
 
Na forma de governar, o PT é trabalhista. Mas muitos de seus dirigentes pensam com a lógica comunista. É como se o partido bastasse a si próprio. No governo, a sociedade estava lá fora e as pressões vieram de onde sempre vêm. No governo, o PT foi igual a todos os outros. E governou qual violino.

Presidentes presos do Brasil

Lula não foi preso. Mas foi levado coercitivamente pela polícia para que prestasse depoimento. Muita gente, na imprensa, tratou o evento como inédito. Não é. Mesmo que seja preso, também não será novo. Cinco presidentes brasileiros foram presos em circunstâncias distintas, dois deles durante o exercício do mandato.
 
O marechal Hermes da Fonseca (governou de 1910 a 14) foi o primeiro. Aconteceu num 2 de julho chuvoso, em 1922. Hermes, sobrinho de Deodoro, repreendera um oficial que, seguindo ordens do presidente Epitácio Pessoa (1918-22), havia aberto fogo contra manifestantes em Pernambuco. No texto de reprimenda, o marechal se assinava ‘comandante do Exército Nacional’. O contexto era o de uma crise política grave. Artur Bernardes já havia sido eleito e Epitácio temia sua deposição num Golpe militar após a posse. O presidente buscava uma maneira de impor disciplina e ali lhe pareceu estar uma oportunidade. Comandante constitucional do Exército, afinal, era ele: Epitácio. Falavam, Hermes e Epitácio, línguas distintas. Hermes se referia ao fato de ser o oficial mais graduado das Forças Armadas. Só que Epitácio não estava errado. Havia uma conspiração em curso.
 
O marechal foi preso porque era um oficial da ativa, Epitácio tinha autoridade legal para fazê-lo e queria deixar claro quem mandava. O procedimento foi muito parecido com o que envolveu Lula. Um oficial bateu à porta, Hermes o acompanhou, entraram ambos em um automóvel que saiu escoltado. Ficou menos de 24 horas na cela. Sua humilhação acabou antecipando um levante militar mal planejado, com destaque para a revolta trágica do Forte de Copacabana, no dia 5. Terminou com 14 oficiais e soldados marchando pela avenida Atlântica numa missão de enfrentamento suicida. Sobreviveram dois, gravemente feridos. O marechal voltou a ser preso após o fracasso do Golpe. Desta vez, ficou seis meses na cadeia. Posto em liberdade, morreu logo depois.
 
O segundo presidente preso exercia o mandato. Aconteceu em 24 de outubro de 1930: Washington Luís (1926-30) estava em reunião com todos os sete ministros, vestia um coldre e, nele, trazia um revólver carregado. Sabia o que lhe esperava. Pela manhã, recusou a oferta de asilo feita pelo cardeal arcebispo do Rio, dom Sebastião Leme. O ambiente era de uma tensa expectativa quando tropas do Exército comandadas por um coronel cercaram o Palácio do Catete e soldados o invadiram. O presidente não resistiu, mas só deixou o prédio após ter chegado dom Sebastião, sua garantia de vida. Abraçou cada um de seus ministros, cumprimentou o cardeal e, junto a ele, embarcou em um automóvel com destino o Forte de Copacabana. Deixaram o Catete pelos fundos, acompanhados dum segundo carro para escolta. O movimento que agora derrubava a República Velha havia começado oito anos antes, naquele mesmo forte. Esteve preso por 27 dias. Incomunicável, sem ter qualquer noção de seu futuro, completou 61 anos de idade em uma cela de 5 por 4 metros. No dia 20 de janeiro, um pequeno barco deixou a praia de Copacabana para que o homem feito ex-presidente subisse a bordo de um vapor com rumo os Estados Unidos. Foi no navio que reencontrou dona Sara, sua mulher. Getúlio Vargas já governava. O exílio durou 17 anos.

Soldados rebeldes prenderam Artur Bernardes (1922-26) no meio de um canavial, em Viçosa, próximo de sua fazenda, no dia 23 de setembro de 1932. Ele, talvez um dos civis mais autoritários que governaram o país, escondia-se. Planejava o contra-golpe, costurando uma aliança que não se concretizou entre Minas e São Paulo para a Revolução Constitucionalista. Foi posto com os filhos adultos em um trem e levado para a capital federal. No Rio, carregaram-no para a Ilha das Cobras. Mesma prisão na qual Tiradentes vivera. Passou mais de um mês numa cela úmida até ser transferido para o Forte da Vigia, no Leme. Tinha vista para o Forte de Copacabana. No total, dois meses e onze dias de incomunicabilidade até ser embarcado no navio Astúrias, que seguia para Lisboa.
 
Em 3 de novembro de 1955, João Fernandes Café Filho (1954-55) foi hospitalizado. Infarto do miocárdio. Ele presidia o país fazia um ano, dois meses, dez dias, desde aquele fatídico 24 de agosto no qual Getúlio optou por um tiro contra o peito. Juscelino Kubitschek (1956-60) já estava eleito e tinha anunciado os planos de erguer Brasília. Mas o candidato derrotado, o udenista Eduardo Gomes, não se conformava. Nem ele, nem muita gente – de inúmeros generais ao jornalista feito político Carlos Lacerda. (Gomes, ora pois, tinha sido um dos rapazes a deixar o Forte de Copacabana contra Epitácio Pessoa.) Assumiu o governo, seguindo a Constituição, o presidente da Câmara Carlos Luz, que se entregou à conspiração não-constitucional imediatamente. Estava a bordo do cruzador Tamandaré, a caminho de Santos para combinar o Golpe, quando veio o contra-golpe do ministro da Guerra, marechal Henrique Teixeira Lott. Catete cercado pelos tanques, a Câmara votou o impeachment. Uma presidência de oito dias. Assumiu o vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Declarou Estado de Sítio. Café Filho, enquanto isso, não sabia de nada, médicos atentos a sua saúde não deixavam. Teve alta em 21 de novembro. E mal chegou a seu apartamento, na rua Joaquim Nabuco, em Copacabana, quando num susto se viu cercado por tanques do Exército. Os militares fiéis a Lott o mantiveram lá, a uma quadra de um certo forte, preso na própria casa, até o dia em que JK enfim tomou posse. Foi, assim, o quarto presidente brasileiro a enfrentar o cárcere. Dez semanas, dois dias.
 
Não foi o último. Tinha, ainda, o próprio JK.
 
Quando Juscelino entrou no Theatro Municipal do Rio, na noite de 13 de dezembro de 1968, ainda tinha esperanças de ser candidato à presidência. Governava o país Artur da Costa e Silva. O Ato Institucional 5 foi decretado, lançando a ditadura em seu período negro. Ao deixar o teatro, ainda não sabia que qualquer esperança de a ditadura ruir se esvaíra e o país era outro. Foi detido por um oficial à paisana ainda nas escadarias, posto num carro e levado para um quartel, em São Gonçalo, onde permaneceu por 27 dias. Como Washington Luís. Incomunicável. Ninguém sabia de seu paradeiro. Era hipertenso e diabético. Tinha 66 anos. Dona Sara, sua mulher, tinha o mesmo nome da mulher de Washington Luís. Ela passou os dias seguintes à prisão em desespero, buscando notícias de seu paradeiro ou, ao menos, um meio para lhe encaminhar os remédios. Da cadeia, saiu para os Estados Unidos. Como Washington Luís. E, como Washington Luís, pegou dinheiro emprestado para a viagem.

Estes são os presidentes brasileiros que foram presos durante ou após o mandato, homens que já lhes tinham garantidas algumas deferências do cargo. O próprio Costa e Silva, afinal, também foi preso por meses, mas isso foi na juventude. Era um dos tenentes de 1922. Se não marchou com os suicidas do Forte de Copacabana é porque participara do levante da Vila Militar, controlado no momento em que nascia, naquele mesmo 5 de julho. E é isso que todos estes presidentes têm em comum: embora muitas décadas separem suas prisões, todas levam a marca do grupo de alunos que se formou na Escola Preparatória de Oficiais do Realengo no ano de 1918.
 
Eles, os rapazes que dedicaram sua vida a dar golpes levando junto o século 20 brasileiro, já não andam mais entre nós.