Como foi inventado o impeachment?

A história do instituto do impeachment inclui um barão medieval, testamenteiro do rei e traidor, o castelo onde nasceu uma santa e até um baixinho mulato invocado, nascido no Caribe, mas que ainda assim foi parar na nota de dez dólares.
 
Em 28 de abril de 1376, a Inglaterra não tinha rei. O futuro Eduardo II era jovem demais para assumir o trono. O príncipe era bisneto de João Sem Terra. Aquele mesmo, irmão de Ricardo Coração de Leão, inimigo nas lendas de Robin Hood. E, de forma mais ou menos similar à lenda, na ausência de um rei quem governava a Inglaterra era outro príncipe João, seu tio. A Magna Carta, primeiro arremedo de constituição, era coisa nova. O documento, que limitava os poderes do rei, fazia certas exigências. Para lançar uma arrecadação de impostos, por exemplo, sua majestade precisava antes formar um Parlamento.  Só que, uma vez convocado, o Parlamento poderia se meter nos desígnios reais. Conceito muito inovador para a Idade Média. O príncipe João não era nada popular e havia anseio para que Eduardo II chegasse ao trono. João não queria convocar os barões para ocupar a Câmara. Temia suas decisões. Mas precisava de dinheiro. Então convocou-os. Não era um conselho fixo, só se reunia a pedido do rei, mas aquele conjunto de nobres que chegou a Londres em 28 de abril foi incomum. Marcou época. Vieram dispostos a fazer uma limpeza no conselho real. Entraram para a história como o Bom Parlamento.
 
Foram estes homens que procederam com o primeiro impeachment da história. A vítima: William Latimer, quarto barão Latimer. Testamenteiro do rei Eduardo I, acusado de corrupção. Vendera sem autorização, por exemplo, o Castelo de Saint-Sauveur de volta para os franceses. (Foi neste castelo que nasceria santa Catarina de Santo Agostinho, uma das primeiras colonizadoras de Québec.)
 
Nobres nunca eram condenados a nada. Isso começou a mudar com a Magna Carta e para eles é que nasceu a ideia de impeachment. O instituto não poderia ser aplicado ao rei. Mas o colegiado de nobres tinha autorização de condenar um de seus pares. Uma maneira primitiva de aplicar justiça a gente com poder.
 
O nosso impeachment é bastante posterior. E sua história começa numa barraca da Guerra Revolucionária que daria aos EUA sua independência. Nela está o general George Washington e, a seu lado, um rapaz de vinte anos de pele um tanto escura. É muito lido, o rapaz, até brilhante. Nascera no Caribe, criado em Nova York e sua mãe, diziam os rumores, gostava de passar a noite na companhia de seus escravos. Por isso o marido se divorciou. O jovem ajudante-de-ordens de Washington galgaria muitos degraus e, estourado como só, faria muitos inimigos. Era do tipo que se metia em duelos. (Até morreu num.) Do tipo que tinha tudo para virar presidente. Mas nunca o foi. Venceu-o nessa disputa seu principal inimigo intelectual, Thomas Jefferson.
 
Chamava-se, o rapaz, Alexander Hamilton.
 
Hamilton, nos anos anteriores à Constituição Americana, ajudou a escrever uma série de panfletos anônimos que muito influenciariam o debate sobre aquele país. Estavam, coletivamente, inventando o que ia ser uma república. Como se faz uma democracia. E, num dos panfletos, o Federalist Paper de número 65, Hamilton foi buscar na Inglaterra o conceito primitivo de impeachment.
 
Imaginar um sistema de governo inteiro não é trivial e ele tinha um problema por resolver: como se faz quando é necessário expurgar um governante? Quando, de alguma forma, o governante quebra a confiança popular? “O julgamento destes casos”, ele escreveu, “não vai falhar em agitar as paixões da comunidade e dividir o povo em partidos.” De início, se perguntou se não seria um caso para a Suprema Corte. Decidiu que não.  Colegiado pequeno. Para julgar o presidente era preciso mais gente. Mais cérebros. Escolheu, para o julgamento, o Senado. A Casa mais sofisticada do Congresso. Havia outro argumento: o impeachment não aplica penas comuns ao mundo jurídico. Não há multa ou prisão. A pena é a cassação dos direitos políticos. Fazia sentido, então, uma corte política.
 
Hamilton cogitou unir, em sessão conjunta, Senado e Suprema Corte. Preferiu trazer o chief-Justice, equivalente ao presidente do Supremo, para presidir o julgamento dos senadores.
 
Alexander Hamilton, o homem cujo rosto aparece na nota de dez dólares, compreendia que um julgamento no Senado seria um julgamento político. “Causa para impeachment”, diria bem mais do que um século depois o deputado Gerald Ford, “é qualquer uma que a Câmara decida justificável.”
 
Ford terminaria na presidência substituindo Richard Nixon.
 
O método inventado pelos ingleses medievais para punir nobres foi adaptado por Alexander Hamilton para o presidencialismo. O Brasil simplesmente o copiou. Os representantes do povo, deputados federais, aceitam uma acusação e a apresentam para o Senado. O Senado escolhe julgar ou não, aí convoca acusação e defesa, com o presidente do Supremo no comando. Um julgamento que, na concepção de seu inventor, devia ser político.

E o impeachment no Brasil?


Quem vê as autoridades da República, de um lado e do outro, com muitas convicções pode até deixar-se enganar. Mas o impeachment tem muitas penumbras, indefinições.

Ele sempre existiu, em todas as constituições republicanas. Aqui está um resumo (PDF) do que dizem os especialistas que mergulharam em nossa jurisprudência. O que fez isso mais recentemente foi Paulo Brossard, ex-ministro do Supremo. Publicou um texto em 1992. Concordava com Hamilton:

 

“Entre nós, porém, como no direito norte-americano e argentino, o impeachment tem feição política, não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, é instaurado sob considerações de ordem política e é julgado segundo critérios políticos, julgamento que não exclui a adoção de critérios jurídicos.”

Há quem discorde.