Quando prefeito da capital federal, o conde Paulo de Frontin gostava de visitar de surpresa as obras pela cidade. Tinha sempre à cabeça um chapéu coco, vestia fraque e pendurava ao braço, pela ponta curva, seu guarda-chuvas. Era um sujeito magro com os ombros apertados, e cultivava uma barba espessa que já saíra de moda naqueles princípios de século 20. Meio grisalha. Ficou só seis meses no governo do Rio. Era engenheiro, Paulo de Frontin, e gostava de imaginar suas obras ali, no local, riscando com o guarda-chuvas no chão de terra e cascalho os limites, instruindo os técnicos. Por isso, trocou 19 vezes de guarda-chuvas no curto mandato e reinventou a cidade. Nesta segunda-feira, a Andrade Gutierrez reconheceu formalmente, pela imprensa, ter pago propinas a torto e a direito. Pois é impossível compreender a relação do Estado brasileiro com suas empreiteiras sem mergulhar na história deste engenheiro de um século atrás, que foi tanto empreiteiro quanto político.
É com ele que a promiscuidade começou.
O Império foi um período de estagnação econômica. O Brasil não cresceu, investiu pouco em infraestrutura, era um país moroso. Nos primeiros anos da República, mudou rápido. Havia um espírito no ar de novidades, de modernidade, e muito muito prejuízo para recuperar. Quando teve início o século 20, os portos de Manaus, de Santos e do Rio já haviam sido modernizados. O primeiro era fundamental para escoar a produção de borracha e, o segundo, a de café. Estas foram as principais commodities brasileiras, numa economia que nunca conseguiu ultrapassar esta fase de se sustentar vendendo commodities. Enquanto isso, o porto carioca era dedicado à importação de bens, produtos principalmente europeus, louças e roupas, tecidos e cristais, objetos que enchiam as sofisticadas lojas destinadas à elite da capital. Esta virada de século foi um período de vasta expansão industrial, primeiro no Rio e depois, com mais força, em São Paulo. E à modernização dos portos seguiu-se a atenção para a teia ferroviária.
A República, nascida com ideias positivistas e fascinada com o século moderno que chegava, se encantou com os engenheiros. Um país de tantas obras precisava destes homens. A Poli, Escola Politécnica de São Paulo, foi fundada em 1893. A do Rio havia se desmembrado em 1874 da Escola Militar para oferecer cursos de engenharia civil. E, reunidos no Clube de Engenharia, os profissionais formados por estas duas instituições trabalharam arduamente para promover o argumento de que só técnicos seriam capazes de construir um futuro digno para o Brasil. Escreveram estudos cheios de números, fizeram palestras, seminários e, em 1900, um Congresso que atraiu para a plateia até o presidente da República. O Clube ficava a duas quadras do Palácio Monroe, onde funcionava a Câmara dos Deputados. O fluxo entre de políticos que se educavam sobre as questões nacionais era intenso. E, muito rápido, apesar de entidade privada, o Clube de Engenharia tornou-se o principal órgão definidor de que obras o Estado brasileiro deveria realizar. Obras, naturalmente, tocadas por seus sócios. Ninguém, no Clube, tinha maior influência do que André Gustavo Paulo de Frontin. Eleito para sua presidência em 1903, permaneceu no cargo pelas três décadas seguintes.
Se o foco da primeira década da República esteve em obras de infraestrutura – portos, ferrovias e saneamento –, isso logo virou. As obras, afinal, dispararam um boom econômico. Havia muita gente enriquecendo rápido. A eletricidade chegou ao Brasil, transformando a vida da classe média alta urbana. No Amazonas, em 1896, foi inaugurado um teatro formidável e exuberante ao passo que fracassou, na década seguinte, a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. A forma venceu a função. Para aqueles novos ricos, mais importante do que a infraestrutura passou a ser a cara das cidades. O Teatro Amazonas não é o único exemplo. O surgimento de bairros novos e elegantes, como Higienópolis, em São Paulo, é outro. Mas em nenhum canto este raciocínio foi mais claro do que no Rio de Janeiro. Era imperativo que a capital perdesse o traçado estreito das ruas coloniais ou o jeitão pacato do tempo do imperador. A cidade inteira precisaria mudar de cara.
Paulo de Frontin, que era diretor do conselho das Docas de Santos e presidente do Clube de Engenharia, foi escolhido engenheiro responsável pelo redesenho da capital que ganhou, na atual Rio Branco, sua primeira avenida com cara parisiense. Do governo de Francisco Pereira Passos (1902-06), passando pelo seu, em 1919, e até o de Carlos Sampaio (1920-22), esteve no comando das decisões de que obras públicas deveriam ser realizadas e quem as faria. Muitas ficaram a seu cargo mas nem todas. Neste período, aproveitou-se ainda de uma instabilidade política carioca para estruturar a Aliança Republicana, partido que comandou a capital até o fim da República Velha. Eleito quatro vezes senador, foi quem mais tempo serviu ao Rio no Senado até fusão da cidade com o estado, em finais dos anos 1970.
Paulo de Frontin tornou-se um homem rico e criou uma estrutura promíscua entre o público e o privado. Mas há três diferenças importantes.
No Rio de Janeiro, o engenheiro foi responsável por obras que, iniciadas na avenida Rio Branco, descem em direção ao sul pela costa, incluindo as avenidas Beira Mar, Praia do Flamengo e de Botafogo, Atlântica, Vieira Souto, Delfim Moreira e Niemeyer, além da urbanização da Lagoa Rodrigo de Freitas. Trata-se, para quem não conhece a antiga capital, de toda a orla pela qual o Rio ganhou fama e que lhe rendeu o apelido Cidade Maravilhosa. Entre as muitas obras está um viaduto na avenida Niemeyer, que separa os bairros do Leblon e São Conrado. Naquele local, quando começaram as corridas de automóvel nos anos 1920, ficavam protegidos pela amurada os jornalistas tomando notas. Foi por isso que ganhou o apelido Gruta da Imprensa. Inaugurado em 1920, o viaduto está inteiro até hoje, nunca sofreu abalo. Mas é justamente naquele ponto que, no início do mês, despencou com semanas de inaugurada uma ciclovia. O desastre matou duas pessoas.
As três diferenças: as obras eram, com raras exceções, de imensa qualidade. Frontin pôde distribuir obras entre seus amigos, pôde defini-las, permitiu a uma casta de homens que enriquecessem fácil com dinheiro do Estado. Mas não há registro de superfaturamento ou propina.
E, por fim: eram obras bonitas.
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