O primeiro estelionato político

Eleito no sábado, Zacarias de Góis assumiu o governo brasileiro numa terça, em 27 de maio de 1862.

Caiu na sexta-feira.

O seu foi o governo mais curto da história. Mas ele voltaria ao comando do país e aquela não seria a pior crise política que enfrentou. Era teimoso, Zacarias. Baiano de Valença, foi um jovem obstinado, daqueles que estudam até tarde para ser alguém um dia. Quando chegou a presidente do Conselho de Ministros pela primeira vez, tinha 46 anos. Substituíra um marquês de quase 60 e sucedeu-o outro marquês, de quase 70. Já Zacarias morreu sem título de nobreza. Irritava-se à toa. “Era um político cheio de arestas, seco como a sua própria figura”, descreveu-o um historiador. Passou a vida um homem magro. “Quando ele se erguia”, escreveu Machado de Assis, “era quase certo que faria deitar sangue a alguém.” Político duro. O homem com coragem para enfrentar o imperador.

Num país que estava nascendo, sua formação política foi como a de um organizador. Indicado para governar o Piauí, aos 30 anos, descobriu que a província não tinha nem secretaria de Fazenda. Criou-a. Na sequência, assumiu o Sergipe para também lá inventar uma estrutura de governo. Fez nascer um sistema de escolas públicas. Virou coringa, daí inventou o governo do Paraná.

A Constituição do Império não era exatamente parlamentarista. Não previa primeiro-ministro. Mas tampouco dizia que era proibido e, com o passar dos anos, o Congresso passou a formar gabinetes de ministros indicando-lhes um presidente. Primeiro ministro sem sê-lo, Zacarias de Góis e Vasconcellos publicou no ano em que chegou ao poder o livro Da Natureza e Limites do Poder Moderador. (Versão em PDF.) Defendia uma monarquia à inglesa, na qual o imperador não teria poder de interferir na política. “Em país livre”, escreveu, “ou o chefe do Estado é responsável, e neste caso decide e governa como entende, ou ele é irresponsável, e então não há função, não há prerrogativa.” Justamente na década de 1860, provocado por ele, iniciou-se um intenso debate a respeito do estranho Poder Moderador outorgado ao simpático monarca, que lhe permitia se meter sempre que o desejasse. Calhou de o livro sair justamente quando dom Pedro II estava no ápice da popularidade. Zacarias assumiu o governo disparando, foi apeado de presto. O imperador tinha pleno direito de vetar quaisquer leis, escolher os senadores em lista tríplice, dissolver a Câmara quando o desejasse, demitir ministros se o quisesse. Suspender juízes. E sua majestade era na lei, tal qual um papa, “inviolável e sagrado”, “sujeito a responsabilidade alguma”. O “gabinete de três dias”, como o apelidou Sérgio Buarque de Holanda, não durou três dias à toa.

Eram dois os partidos durante o Império. Os Conservadores (Saquaremas) e os Liberais (Luzias). Certa vez, um deputado pernambucano sugeriu que não havia “nada mais parecido com um saquarema do que um luzia no poder”. A frase, muito citada, tem contexto: o período da década de 1850, no qual houve uma política de apaziguamento no país que passara seu período pós independência em convulsões. E, ainda assim, é uma frase que ecoa, que nos enche de sentidos até hoje. Só que o premiê Zacarias era um Liberal do ramo Progressista. Uma de suas crenças pessoais, ditadas também pelo temperamento propício ao confronto, era de que partidos deviam representar ideias em choque. Desejava mudanças.

Zacarias presidiu o conselho de ministros em 1862, durante aqueles três dias, então entre janeiro e agosto de 1864 e, por fim, entre 3 de agosto de 1866 e 16 de julho de 1868. Havia sido eleito por uma diferença de três votos e encontrava oposição até mesmo dentro de seu partido. E aí entram as peculiaridades do Brasil. Porque o ramo progressista era o mais conservador dentre os liberais. Eles desejavam reformas mas seguiam de forma rígida a Constituição, imprensados constantemente entre o partido Conservador e as bases radicais de seu partido. Esta rigidez legalista convinha ao temperamento de Zacarias. Ele contestava com veemência o Poder Moderador e, no entanto, por esta mesma estatura pessoal era a melhor defesa que Pedro II tinha contra os radicais. Aconteceu-lhes, porém, a Guerra do Paraguai. E Zacarias de Góis, no comando do governo, considerava o duque de Caixas um comandante inepto.

Não eram rivais novos. Em seu primeiro e muito curto governo, Zacarias sucedera o marquês de Caxias, agora duque. Anos depois, o comandante do Exército impunha ao imperador uma decisão. Ou se demitia ele ou se demitia o premiê. Pedro II compreendia, torturado, exatamente a posição em que se via. Era ceder uma decisão de governo à chantagem do comandante do Exército. Pois cedeu. Um deputado liberal radical chamou o ato de “estelionato político”. Era Joaquim Saldanha Marinho, que em pouco tempo se filiaria ao nascente grupo republicano. Ali nasceu o republicanismo.

Estelionato político, estelionato eleitoral, aqui e ali o Brasil se repete.