Um estupro no Brasil Colônia

Desde que há Brasil, este país inventado a partir de 1500, há crime de estupro previsto em lei. As Ordenações Afonsinas, o código legal que durou até 1513, explicavam como a vítima deveria se portar para registrar queixa.
 
 Que se alguma mulher forçarem em povoado, que deve fazer querela em esta guisa, dando grandes vozes, e dizendo, ‘vedes que me fazem’, indo por três ruas; e se o assim fizer, a querela seja valedoura: e deve nomear o que a forçou por seu nome.
 
 Estar previsto por lei, porém, é coisa que ilude. Estupro foi compreendido de muitas formas, punido noutras tantas e evoluiu de forma muito lenta até a legislação atual. A história desta evolução diz muito sobre o Brasil.
 
 As “ordenações” eram compilações. A reunião de todas as leis que um rei considerava válidas. Valeram as de dom Afonso V por um tempinho e, depois, passaram a vigorar as Ordenações Manuelinas, editadas pelo rei que liderou o descobrimento. Em 1605 mudou de novo e vieram as Ordenações Filipinas, de Filipe II da Espanha. Tempos de União Ibérica. Mesmo quando o duque de Bragança reconquistou a independência portuguesa, o código foi mantido. É o pacote legal que valeu por todo o período de formação do Brasil, começou a mudar após o Império mas manteve-se parcialmente em vigência até princípios do século 20.
 
 Assim, no tempo de Cabral, a mulher estuprada tinha de ter presença de espírito para, imediatamente após o ato, sair gritando pelas ruas que fora vítima do crime e, se possível, citando o criminoso. Talvez muito machucada, possivelmente em choque, e ainda assim obrigada à exposição pública. Se soa bárbaro, piora. Porque para compreender a lei é preciso entender, antes, o lugar do homem e o da mulher naquela sociedade.
 
 Veja-se o caso de outro crime sexual previsto pelas Ordenações Filipinas, o adultério. A lei autorizava o marido de uma mulher adúltera que matasse tanto ela quanto seu amante desde que fossem, tanto marido quanto amante, de classe social equivalente. Um homem do povo não poderia matar um fidalgo, embora pudesse requerer dele uma indenização. Tratava-se de um crime de honra. A indenização ou a morte restabeleciam, perante a sociedade, a honra do homem traído. A mulher adúltera, não importava sua classe social, também perdia a honra. Só que de forma irrecuperável. Se o marido traído por adultério poderia perdoar sua mulher, esta era uma escolha dele e apenas. A relação, dentro de um casamento, foi legalmente desigual por quase toda história. O marido tinha poder de vida e morte sobre sua mulher e, assim, ele tinha como recuperar a honra. Ela, não. Nem se adúltera, tampouco se estuprada. Não bastasse a violência, a honra da mulher era perdida para sempre. Uma marca indelével. Não à toa, muitas vezes era preferível não acusar o criminoso para evitar a exposição.
 
 E, sim, é claro que piora. Se alguma mulher for corrupta de sua virgindade por força, de noite ou de dia, bradasse logo no dito ermo: ‘fuão me fez isto’, mostrando logo sinal de corrompimento de sua virgindade. Fuão, a versão arcaica da palavra fulano, dizia a lei Filipina, precisava ser acusado de presto. O brado em público imediato tinha razão de ser. Era para permitir a possibilidade de flagrante. A Igreja Católica, origem indireta das leis, desconfiava da mulher. Ela perdia a honra mais fácil e era vista como pouco confiável, um tipo humano cheio de subterfúgios, essencialmente traíra. O crime não podia ficar apenas na palavra de algoz contra vítima pois a palavra da mulher valia menos. O receio é de que, para prejudicar bons homens, mulheres pudessem levantar falsas acusações de violência. Assim, para haver estupro, era preciso que antes a mulher fosse virgem. Estupro marital era conceito inexistente. E uma mulher solteira que já não fosse virgem não tinha honra para que a perdesse.
 
 Porque o crime não era contra o ser humano. Era contra uma entidade abstrata que o ser humano porta: sua honra.
 
 A definição de estupro, portanto, era bem distinta da atual. A mulher era propriedade do marido. Mesmo que casasse por desejo de seu pai quase criança, logo após a primeira menstruação. Uma escrava era propriedade do senhor. Em nenhum destes casos poderia uma relação sexual ser considerada crime. Não havia violação da honra mesmo que houvesse violência.

Vida real

A vida prática, na colônia, forçava que todos relaxassem a lei. O número de mulheres brancas era muito menor do que o de homens na composição da elite. Em Minas Gerais, centro econômico do país durante quase todo o século 18, metade dos habitantes eram escravos. Em 1776, 60% da população era composta por homens. Mulheres brancas compunham apenas 8% dos mineiros. Boa parte dos casamentos entre pessoas livres, portanto, não se dava no papel e os relacionamentos estáveis entre homens brancos e mulheres negras eram a regra, não a exceção. O poeta inconfidente Inácio José de Alvarenga Peixoto casou-se com uma moça tida como uma das mais belas da elite local, Bárbara Heliodora, descendente dos bandeirantes que descobriram o ouro. Já tinham filhos quando finalmente um padre amigo os casou. Outro poeta revolucionário, Tomás Antônio Gonzaga, engatou uma longa relação com Maria Joaquina Anselma de Figueiredo, loura disputadíssima em Vila Rica. Teve com ela um filho e lhe dedicou alguns dos mais bonitos poemas de amor em português. Os historiadores a apelidaram de Marília loura, por ser uma das duas inspiradoras do Dirceu que ele encarnava em versos. Gonzaga era o número dois da administração portuguesa em Minas. Quando o número um, o governador Luís da Cunha Meneses, se mostrou interessado, Anselma virou as costas para o poeta. E este, com raiva, escreveu contra seu adversário as Cartas Chilenas nas quais Meneses se torna o corrupto governador Fanfarrão Minésio. A moça também teve com o segundo namorado outro filho. Nada disso era segredo na capital da província, e a atual Ouro Preto era a maior cidade das Américas. O terceiro poeta, Cláudio Manuel da Costa, jamais casou no papel, mas passou a vida com Francisca Arcângela de Sousa, uma escrava alforriada com quem teve cinco filhos. Xica da Silva, no Arraial do Tejuco, atual Diamantina, pode parecer exceção, mas não era. Metade das casas daquela cidade pertenciam a mulheres que haviam nascido escravas e se envolveram com homens da elite, quase sempre mais velhos, e que lhes deixavam por herança filhos, dinheiro e propriedades.
 
 É impossível julgar, em cada um destes casos, onde há amor e onde há violência. Pois, em troca de sexo, garantiram cada uma destas mulheres não só deixar a senzala, com uma vida mais digna para elas e os filhos.
 
 Embora a letra dura da lei fosse rígida, o conceito de honra e da liberdade sexual tinha sua fluidez, principalmente no povo, mas até mesmo na elite. Quem sofria particularmente eram as crianças. Quando engravidavam fora do casamento, as mulheres da elite sumiam por um tempo e os bebês recém-nascidos eram colocados nas rodas de expostos de conventos, dados sem muito destino. O primeiro filho de Anselma foi dado a um casal para que o criasse. Quando ela engravidou de Cunha Meneses, o governador a fez se casar com um militar, a quem subornou para assumir a criança. Mulheres negras que porventura ganhassem a alforria sem casar com o antigo senhor tinham só um jeito para o sustento: oferecer o corpo. Em muitas formas que não apenas o estupro, dos mais pobres aos mais ricos, a violência sexual contra a mulher era a norma.
 
 A violência ligada ao sexo, por séculos, foi o pano de fundo do cotidiano brasileiro.

Quem é a vítima?

O estupro só ganhou o nome de estupro em 1890, quando o Brasil já era republicano. Permaneceu um crime que atingia a “segurança da honra, honestidade das famílias e do ultraje público”. Em 1940, modernizada, a lei o enquadrou entre “os crimes contra os costumes”. Ou seja, o crime ainda não era contra sua vítima e sim contra os valores da sociedade.
 
 É a marca afonsina. Filipina. Colonial. Imperial. Chocantemente velha. A vítima não sofre pela violência brutal. Sofre pelo que vão pensar dela. Uma mulher desonrada.
 
 A civilidade só veio em 2009, quando o Código Penal enxergou estupro como um crime “contra a dignidade sexual”.
 
 Contra a dignidade humana.
 
 Faz sete anos. E isso diz muito sobre nós.
 
 Quando se duvida do estupro de uma adolescente porque é ativa sexualmente, há motivo. Por quase toda a história, mulheres que não tivessem um comportamento casto e submisso eram mulheres de quem se deve desconfiar. 450 anos de Brasil pesam sobre nós. Sobre como pensamos. Sobre nossos costumes.
 
 É assim que nasce a cultura do estupro.