Hoje, a Praça da Sé em São Paulo marca o centro absoluto da cidade. É a partir de lá que se mede a quilometragem das rodovias, um grande largo concretado com fila de palmeiras, a principal estação de metrô, e nas redondezas livrarias e centros culturais, além da oferta de serviços burocráticos rápidos à população. Mas, quando Jaguaretê apareceu ali, num dia em 1640, o cenário era todo muito diferente. Chão de terra e, ao lado, a igrejinha da Matriz. Aos 45, ele já era um homem importante. Uns séculos depois, historiadores que queriam engrandecer as figuras do passado traduziram o apelido para Tigre. Como se os paulistanos de antanho falassem português entre si ou conhecessem os bichos de África e Ásia. Não havia tigre no Brasil. Jaguaretê era filhote de onça em tupi, um homem importante e feroz. Trineto do grande chefe Tibiriçá. Bisneto de João Ramalho, fundador da cidade. E por este apelidoconheciam Fernão de Camargo. Mameluco como quase todos da cidade. Apenas cinco anos antes, havia liderado com Luís Dias Leme a primeira grande bandeira contra as missões jesuítas do sul. Viviam de caçar índios para escravizar. Mas não naquele dia. Ali, no Largo da Matriz, de frente à futura Sé, Fernão viu seu inimigo, desembainhou espada e adaga e partiu para cima. Começava, ali, a primeira disputa política intensa do Brasil e, depois daquele dia e pelos vinte anos seguintes, São Paulo rachou em dois partidos.
Não foi um ano qualquer, 1640. A tensão na cidade era intensa. Havia incertezas no ar e uma violenta disputa pelo poder. Começou com os jesuítas. Os padres de preto, também fundadores de São Paulo, se compreendiam como guardiões dos nativos. Entendiam sua missão na América como a de converter a população local. A discussão entre antropólogos sobre se havia mérito real nesta defesa é longa, mas os jesuítas atrapalhavam os bandeirantes em suas expedições de caçada a escravos. Quando um padre apareceu na cidade com uma bula definitiva assinada pelo papa Urbano VIII autorizando a excomunhão de quem escravizasse os índios, o lento e continuado acúmulo de rixas entre paulistanos e jesuítas ao longo de quase um século explodiu. Excomunhão era coisa muito séria num tempo em que religião e vida civil se confundiam. Fernão de Camargo liderou o povo paulistano para o que chamaram de botada dos padres fora. Expulsos para o Rio de Janeiro, demorariam sete anos para negociar o retorno.
A expulsão dos padres jesuítas, repentinamente, criou uma situação de que tudo pode. Afinal, padres de outras ordens não estavam nem aí para os tupis.
Também naquele ano, João, oitavo duque de Bragança, liderou o Golpe que rompeu a União Ibérica e ascendeu ao trono português como dom João IV. Portugal tornara-se independente. A notícia provocou confusão na colônia. O que era melhor? Manter-se parte do Império espanhol ou jurar fidelidade ao novo rei. Naquele clima de revolta à flor da pele paulistana, um grupo chegou a declarar o castelhano Amador Bueno rei da cidade, insinuando fidelidade à Espanha. Bueno, que era tio de Fernão, sequer vacilou. De presto ergueu a espada jurando fidelidade a Portugal. Não queria confusão.
No cenário de incertezas, o que estava em jogo eram dinheiro e posição social. Poder. Primeiro, controle sobre os escravos índios. Ou seja: riqueza. Em segundo, o controle da Câmara Municipal. Status. Juntos, poder.
Nos primeiros dois séculos de Brasil, as eleições eram bem mais livres do que no período final da Colônia ou durante o Império. Os mandatos duravam três anos e os pleitos ocorriam ao final de cada turno, em 1º de janeiro. Naquelas cidades coloniais essencialmente pobres, votavam quase todos os livres. O voto consistia em dizer, ao pé do ouvido do escrivão, o nome de seis eleitores. Os seis mais votados, por sua vez, eram divididos em duplas que apresentavam, cada qual, três listas com sugestões para três vereadores, três procuradores e três juízes. O juiz mais velho da cidade, então, avaliava as listas tríplices selecionando três nomes finais para cada cargo. Bolas de cera marcadas com os nomes dos escolhidos eram guardadas em sacos e protegidas até o dia da posse, quando os nomes seriam divulgados. Não havia, ainda, a ideia de separação entre poderes. Os vereadores tinham um cargo mais executivo, tomando decisões a respeito de que impostos cobrar e que obras publicas fazer. Os procuradores traziam a estes vereadores os desejos do povo. E os juízes decidiam perante queixas. Acima destes homens da Câmara estava o governador, um chefe militar nomeado pelo rei com um bocado de poder sobre os eleitos. Ainda assim, a Câmara tinha muito espaço político e ocupar cargos na gestão, embora não rendesse salários, trazia imenso status. Eram, os escolhidos, chamados de nobres da terra.
Fernão de Camargo era juiz. Quando desembainhou espada e adaga partindo contra Pedro Taques, disparou uma guerra. Ninguém os apartou mas, vindos de toda parte, muitos se aliaram a eles. A briga, aço contra aço, se estendeu pelas ruas secundárias, dando uma volta ao quarteirão e tornando ao Largo da Matriz. Na atual Praça da Sé. Homens caíram mortos. Os Camargo estavam, ali, rompendo com os Pires ligados a Taques. Um dos primeiros historiadores paulistanos comparou a briga com Montequios e Capuletos shakespearianos.
Como em Romeu e Julieta, a guerra civil deixou muitos mortos. Mas nenhum caso é mais emblemático do que o de Salvador Pires que matou sua mulher, Leonor de Camargo, pouco depois. Fernão Dias Paes, um dos mais famosos bandeirantes, partiu em defesa de Salvador, protegendo-o para que fosse levado de navio para julgamento na Bahia, capital da colônia. Não adiantou. Numa revolta a bordo, pegaram o rapaz assassino, amarraram seu pescoço a uma pedra e atiraram-no ao mar.
Por duas décadas, São Paulo dividiu-se entre os partidos Camargo e Pires, com eleições anuladas, queixas contínuas ao governador da região, localizado no Rio, ao governador-geral, na Bahia, e até a Lisboa. A briga política tornou-se um problema para a Coroa. Afinal, perante a constante ameaça de violência, nenhum dos grupos ousava deixar a capital. As bandeiras diminuíram e, com elas, a busca por riquezas no interior do Brasil. E a situação era grave. Após a expulsão dos holandeses de Pernambuco, em 1644, Portugal foi lentamente perdendo o monopólio do açúcar, que começava a ser plantado nas Antilhas. Além disso, o reino há pouco independente havia se comprometido em dívidas com os ingleses. O congelamento por conta de uma disputa local do Brasil sul imobilizava oportunidades.
Por fim, um governador-geral impôs a solução. A Câmara passaria a ser composta por um terço Camargos, um terço Pires e um terço neutros. Da briga, sobrou Jundiaí. A cidade, afinal, foi fundada por Camargos que fugiam da lei.
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