Há uma teoria corrente em Brasília que segue assim: se acontecer de Michel Temer chegar à presidência, um dos primeiros ministros que nomeará é Nelson Jobim. Jobim é daqueles políticos das emergências. Inteligente, culto, sabe muito bem usar autoridade. Resolve as coisas. Assumiria, possivelmente, a pasta da Justiça. E cuidaria para, lentamente, fazer com que a Operação Lava Jato deixasse de ser um problema. Segundo esta teoria, não é que Dilma não tenha querido interferir na operação. Faltou-lhe competência na arte do exercício de poder. Jobim é profissional.
Criamos o hábito, ao longo dos últimos anos, de chamar o PMDB de partido fisiológico. A afirmação não é incorreta, mas é imprecisa. Há fisiologismo em praticamente todos os partidos brasileiros. O PMDB é mais do que isso: ele representa algo que nunca deixou de existir. É a República Velha dentro de nós. E um governo Temer teria muito de um revival.
Chamamos políticos tradicionais nordestinos de coronéis e alguns gaúchos populistas de caudilhos. Ambos os termos remetem ao confuso período entre Império e República. Em um tempo no qual o Exército era pequeno e pouco confiável, logo após a Independência, o governo instaurou a Guarda Nacional. Era uma força militar paralela. Cada homem rico de uma região, se agraciado com a patente de Coronel da Guarda Nacional pelo imperador ou presidente, teria o direito de formar uma tropa armada. Metade dos homens que lutaram na Guerra do Paraguai pertenciam à Guarda Nacional, não ao Exército. E, regionalmente, um exército particular juntava-se à posse de terras e dinheiro para consolidar o poder dos chefes locais. Caudilhos, na América do Sul espanhola, eram a mesma coisa. Chefes regionais com poder militar. Embora mais argentinos e uruguaios do que brasileiros, no início da República houve caudilhos gaúchos importantes, como Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros.
O Brasil da República Velha era fundamentalmente agrícola. (Indústria só em São Paulo e um pouco no Rio.) Entre 1900 e 1920, 65% dos brasileiros com mais de 15 anos eram analfabetos. (O índice só chegou aos 50% após a Segunda Guerra.) A classe média urbana era minúscula. Como se governa um país assim? Foi feito um pacto dentro da elite para que ninguém se intrometesse no poder de cada chefe local. Muitos chamam aquele período de República dos Governadores. Ou República Oligárquica. Mas cada estado era formado por bolsões de poder regional, cada região com seu coronel. Os coronéis decidiam quem o próximo governador seria e os governadores indicavam o presidente. Num ambiente de eleições plenamente fraudadas, funcionava.
(A cada dois ou três anos no período houve pelo menos uma grande explosão de revolta popular. O jogo jamais foi estável.)
Assim descrito, parece puramente fisiológico. Mas não era só isso. Havia preocupação com qualidade técnica do governo. Vai além: o pacto não era só entre coronéis. Era entre coronéis e os bacharéis, apelido da elite intelectual-administrativa brasileira. Uns não se metiam com os outros e todos governavam juntos.
Gilberto Freyre, nosso primeiro grande intérprete de nação, gostava de revelar as estruturas sociais brasileiras não só pelos jogos de poder mas também pelos tipos físicos e humores. Franzinos com a cabeça grande, Rui Barbosa, Santos Dumont ou o marechal Cândido Rondon simbolizavam uma espécie de David brasileiro contra os Golias do mundo, pequenos mas astutos. Não eram, porém, os únicos tipos da jovem República. O barão do Rio Branco e João Pandiá Calógeras, por exemplo, eram homens altos e corpulentos, que sabiam usar o espaço físico que ocupavam para se impor. Eram, também, muito cultos. Diferentemente dos homens miúdos, transpiravam autoridade. Tinham comando. Calógeras, em particular, era também um coringa. Ocupou três pastas: Agricultura, Comércio e Indústria (que era um só ministério), Fazenda e Guerra. Era um daqueles homens chamados para resolver problemas. E, em geral, resolvia.
Nelson Jobim, que além de ter presidido o STF, foi ministro da Justiça de FHC e da Defesa de Lula, é um político da Velha República. O coringa que chega para resolver as coisas do jeito que sempre se fez. Como na República Velha, não importa quem preside o país, os coringas estão sempre lá.
No PMDB há bacharéis, como Jobim e Temer, e há os oligarcas.
O primeiro engenho da família Calheiros, em Alagoas, data de 1730. O presidente Floriano Peixoto era descendente dos Calheiros de Mello. Sim: Mello. Como Fernando Collor de Mello. Avós e bisavós do presidente do Senado foram coronéis e majores da Guarda Nacional. O apelido de seu pai, aliás, era ‘major’ Olavo. Sua mãe, que é viva, se chama dona Ivanilda Vasconcelos. O primeiro casamento entre um Calheiros e uma Vasconcelos não foi o de seu Olavo. Foi o de João Gomes de Mello Calheiros com Sebastiana de Vasconcellos. É o casal que chegou a Alagoas em 1730. É assim que se faz uma oligarquia.
Romero Jucá é Romero Jucá Rego Lima. Embora o senador tenha nascido em Pernambuco e feito carreira política em Roraima, os Rego são uma oligarquia paraibana. Vital do Rego, atual ministro do TCU que veio do PMDB, é seu parente um quê distante. Lá atrás, Tobias do Rego Monteiro, que foi senador pelo Rio Grande do Norte, começou a carreira como chefe de gabinete de Rui Barbosa. O grande escritor paraibano José Lins do Rego não escreveu um romance chamado Menino de Engenho à toa.
Rastreia-se o comando do PMDB principalmente no Centro Oeste, Nordeste e Norte e vê-se a República Velha. Oligarquias antigas, que mantiveram seu poder regional desde o sempre. Não é exclusividade do PMDB. Mas o PMDB é uma República Velha inteira encapsulada num partido. E isto quer dizer uma lógica, um jeito de governar.
De certa forma, esta é a tragédia do PT: o partido que, acreditando estar no comando, foi engolido pela mais antiga máquina política brasileira. O Brasil, dizia outro Jobim, não é para amadores.