Presidentes presos do Brasil

Lula não foi preso. Mas foi levado coercitivamente pela polícia para que prestasse depoimento. Muita gente, na imprensa, tratou o evento como inédito. Não é. Mesmo que seja preso, também não será novo. Cinco presidentes brasileiros foram presos em circunstâncias distintas, dois deles durante o exercício do mandato.
 
O marechal Hermes da Fonseca (governou de 1910 a 14) foi o primeiro. Aconteceu num 2 de julho chuvoso, em 1922. Hermes, sobrinho de Deodoro, repreendera um oficial que, seguindo ordens do presidente Epitácio Pessoa (1918-22), havia aberto fogo contra manifestantes em Pernambuco. No texto de reprimenda, o marechal se assinava ‘comandante do Exército Nacional’. O contexto era o de uma crise política grave. Artur Bernardes já havia sido eleito e Epitácio temia sua deposição num Golpe militar após a posse. O presidente buscava uma maneira de impor disciplina e ali lhe pareceu estar uma oportunidade. Comandante constitucional do Exército, afinal, era ele: Epitácio. Falavam, Hermes e Epitácio, línguas distintas. Hermes se referia ao fato de ser o oficial mais graduado das Forças Armadas. Só que Epitácio não estava errado. Havia uma conspiração em curso.
 
O marechal foi preso porque era um oficial da ativa, Epitácio tinha autoridade legal para fazê-lo e queria deixar claro quem mandava. O procedimento foi muito parecido com o que envolveu Lula. Um oficial bateu à porta, Hermes o acompanhou, entraram ambos em um automóvel que saiu escoltado. Ficou menos de 24 horas na cela. Sua humilhação acabou antecipando um levante militar mal planejado, com destaque para a revolta trágica do Forte de Copacabana, no dia 5. Terminou com 14 oficiais e soldados marchando pela avenida Atlântica numa missão de enfrentamento suicida. Sobreviveram dois, gravemente feridos. O marechal voltou a ser preso após o fracasso do Golpe. Desta vez, ficou seis meses na cadeia. Posto em liberdade, morreu logo depois.
 
O segundo presidente preso exercia o mandato. Aconteceu em 24 de outubro de 1930: Washington Luís (1926-30) estava em reunião com todos os sete ministros, vestia um coldre e, nele, trazia um revólver carregado. Sabia o que lhe esperava. Pela manhã, recusou a oferta de asilo feita pelo cardeal arcebispo do Rio, dom Sebastião Leme. O ambiente era de uma tensa expectativa quando tropas do Exército comandadas por um coronel cercaram o Palácio do Catete e soldados o invadiram. O presidente não resistiu, mas só deixou o prédio após ter chegado dom Sebastião, sua garantia de vida. Abraçou cada um de seus ministros, cumprimentou o cardeal e, junto a ele, embarcou em um automóvel com destino o Forte de Copacabana. Deixaram o Catete pelos fundos, acompanhados dum segundo carro para escolta. O movimento que agora derrubava a República Velha havia começado oito anos antes, naquele mesmo forte. Esteve preso por 27 dias. Incomunicável, sem ter qualquer noção de seu futuro, completou 61 anos de idade em uma cela de 5 por 4 metros. No dia 20 de janeiro, um pequeno barco deixou a praia de Copacabana para que o homem feito ex-presidente subisse a bordo de um vapor com rumo os Estados Unidos. Foi no navio que reencontrou dona Sara, sua mulher. Getúlio Vargas já governava. O exílio durou 17 anos.

Soldados rebeldes prenderam Artur Bernardes (1922-26) no meio de um canavial, em Viçosa, próximo de sua fazenda, no dia 23 de setembro de 1932. Ele, talvez um dos civis mais autoritários que governaram o país, escondia-se. Planejava o contra-golpe, costurando uma aliança que não se concretizou entre Minas e São Paulo para a Revolução Constitucionalista. Foi posto com os filhos adultos em um trem e levado para a capital federal. No Rio, carregaram-no para a Ilha das Cobras. Mesma prisão na qual Tiradentes vivera. Passou mais de um mês numa cela úmida até ser transferido para o Forte da Vigia, no Leme. Tinha vista para o Forte de Copacabana. No total, dois meses e onze dias de incomunicabilidade até ser embarcado no navio Astúrias, que seguia para Lisboa.
 
Em 3 de novembro de 1955, João Fernandes Café Filho (1954-55) foi hospitalizado. Infarto do miocárdio. Ele presidia o país fazia um ano, dois meses, dez dias, desde aquele fatídico 24 de agosto no qual Getúlio optou por um tiro contra o peito. Juscelino Kubitschek (1956-60) já estava eleito e tinha anunciado os planos de erguer Brasília. Mas o candidato derrotado, o udenista Eduardo Gomes, não se conformava. Nem ele, nem muita gente – de inúmeros generais ao jornalista feito político Carlos Lacerda. (Gomes, ora pois, tinha sido um dos rapazes a deixar o Forte de Copacabana contra Epitácio Pessoa.) Assumiu o governo, seguindo a Constituição, o presidente da Câmara Carlos Luz, que se entregou à conspiração não-constitucional imediatamente. Estava a bordo do cruzador Tamandaré, a caminho de Santos para combinar o Golpe, quando veio o contra-golpe do ministro da Guerra, marechal Henrique Teixeira Lott. Catete cercado pelos tanques, a Câmara votou o impeachment. Uma presidência de oito dias. Assumiu o vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Declarou Estado de Sítio. Café Filho, enquanto isso, não sabia de nada, médicos atentos a sua saúde não deixavam. Teve alta em 21 de novembro. E mal chegou a seu apartamento, na rua Joaquim Nabuco, em Copacabana, quando num susto se viu cercado por tanques do Exército. Os militares fiéis a Lott o mantiveram lá, a uma quadra de um certo forte, preso na própria casa, até o dia em que JK enfim tomou posse. Foi, assim, o quarto presidente brasileiro a enfrentar o cárcere. Dez semanas, dois dias.
 
Não foi o último. Tinha, ainda, o próprio JK.
 
Quando Juscelino entrou no Theatro Municipal do Rio, na noite de 13 de dezembro de 1968, ainda tinha esperanças de ser candidato à presidência. Governava o país Artur da Costa e Silva. O Ato Institucional 5 foi decretado, lançando a ditadura em seu período negro. Ao deixar o teatro, ainda não sabia que qualquer esperança de a ditadura ruir se esvaíra e o país era outro. Foi detido por um oficial à paisana ainda nas escadarias, posto num carro e levado para um quartel, em São Gonçalo, onde permaneceu por 27 dias. Como Washington Luís. Incomunicável. Ninguém sabia de seu paradeiro. Era hipertenso e diabético. Tinha 66 anos. Dona Sara, sua mulher, tinha o mesmo nome da mulher de Washington Luís. Ela passou os dias seguintes à prisão em desespero, buscando notícias de seu paradeiro ou, ao menos, um meio para lhe encaminhar os remédios. Da cadeia, saiu para os Estados Unidos. Como Washington Luís. E, como Washington Luís, pegou dinheiro emprestado para a viagem.

Estes são os presidentes brasileiros que foram presos durante ou após o mandato, homens que já lhes tinham garantidas algumas deferências do cargo. O próprio Costa e Silva, afinal, também foi preso por meses, mas isso foi na juventude. Era um dos tenentes de 1922. Se não marchou com os suicidas do Forte de Copacabana é porque participara do levante da Vila Militar, controlado no momento em que nascia, naquele mesmo 5 de julho. E é isso que todos estes presidentes têm em comum: embora muitas décadas separem suas prisões, todas levam a marca do grupo de alunos que se formou na Escola Preparatória de Oficiais do Realengo no ano de 1918.
 
Eles, os rapazes que dedicaram sua vida a dar golpes levando junto o século 20 brasileiro, já não andam mais entre nós.